Dizer(-se) em águas e afetos

Lívia Natália. Dia bonito pra chover. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

 

liviaJá em seu poema de abertura, mais precisamente no verso final, Dia bonito pra chover se apresenta como “um livro todo feito de sol” – expressão que explicitamente dialoga com o título da obra. A dimensão essencialmente solar do livro de Lívia Natália, no entanto, encerra maior complexidade do que pode parecer à primeira vista, passando longe de meramente reafirmar topoi frequentes na poesia que se compraz em afirmar seu pertencimento à terra brasilis ou que se reduz ao elogio do cotidiano, por exemplo.  Trata-se de uma poesia que, percorrendo uma trilha bastante diversa, entrelaça uma profunda reelaboração de motivos extraídos da tradição – algo não dissimulado, como evidenciam títulos como Cantiga de Amigo ou Cântico dos cânticos – com a construção de um discurso poético que revisita motivos constantes na lírica em torno do temário amoroso; não obstante, tudo isso passa pelos filtros próprios do singular estro cultivado por Lívia Natália, do que resulta um livro que faz jus à obra de um dos mais importantes nomes da literatura brasileira contemporânea.

Familiar aos leitores da produção lírica de Lívia Natália, o motivo da água já emerge no segundo poema de Dia bonito pra chover, em cujas estrofes finais lemos:

Ele pensa que anda solto,
longe de mim. Mas
como pode um peixe, vivo?

No que ele pensa em deambular macio
eu já o engoli
e vomitei
com a minha boca
toda feita de Água.

A dimensão elementar da subjetividade lírica, ao assumir-se água, por um lado se inscreve no repertório imagético consolidado na obra poética da escritora baiana; por outro lado, ela assim mobiliza motivos centrais em Dia bonito pra chover, vinculando a experiência erótica-amorosa e as reflexões em torno da própria identidade. Há nisso uma pletora de questões, sobre as quais dissertarei com a brevidade imposta pelos limites desta recensão.

No que tange aos questionamentos identitários, parece-me necessário aludir a uma questão que perpassa a obra em suas camadas mais profundas, e que pode passar despercebida em uma primeira leitura: a indagação “quem sou?”, que no âmbito do volume pode ser reformulada nos seguintes termos: “o que essa(s) experiência(s) faz(em) de mim?”, ou ainda: “o que eu faço de mim a partir dessa(s) experiência(s)?” Essa consciência lírica autocognoscente se evidencia mais ostensivamente em poemas como Talho (“ […] // Meu corpo é bruto e lambe suores estranhos, / não sabe fazer a conta do que sobra de si / na partilha de seus desejos.” // […]), Confissão (“[…] / Temo porque sou Rio, e meu caminho é desaguar. / Penso nas embarcações que me atravessam, / no pescador todo feito de peixes / que eu conquistei sem nem cantar. / […]”) e Do que não cessa (“[…] // Navego nas Águas donde brota / uma face tua que me liberta. // […]”).

É nesse sentido que, em Dia bonito pra chover, deparamo-nos com uma subjetividade lírica disposta a levar até o limite os questionamentos em torno de experiências que têm lugar em seu âmago, sem que isso implique a sempre falseadora admissão de uma clivagem entre o interior e o exterior – como se houvesse, de fato, uma “alma” infensa ao que toca o corpo. Porque uma e outro são o mesmo, importa reconhecer a radicalidade dos afetos e de seus efeitos; e, a esse propósito, cabe enfatizar que essa subjetividade, que se reconhece e se afirma como feminina, em momento algum renuncia à sua agência, assumindo a responsabilidade de refazer-se (e reconhecer-se) em cada momento. Assim é que lemos, em Da cura:

Amo hoje esta mulher:
Eu, no espelho de onde me vejo,
e as Águas do que desejo
me transformam em imensidão.

Reconheça-se a força desse discurso lírico que, para além do amor ao outro, reafirma o amor a si, atento à premência do autocuidado; que, para além de meramente entregar-se ao desejo, assume-o como expressão própria, dialeticamente o reafirmando como força constitutiva – do que resulta esse gesto transformador que abre o eu em imensidão. Reconheça-se, finalmente, a força da poesia de Lívia Natália – que, em Dia bonito pra chover, mais uma vez se revela em toda a sua pujança e potência.

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