O coração pulsa verde e rosa

PicsArt_02-23-02.49.45Nestas semanas de folia, os sambas-enredo de duas escolas que compõem o grupo especial me chamaram a atenção, colocando-se como uma antítese perfeita uma da outra. Ambas cantaram a história, mas sob perspectivas explicitamente opostas. Falo da Unidos de Vila Isabel e da Estação Primeira de Mangueira.

Neste ano, a Vila homenageou Petrópolis, a cidade imperial, com o enredo “Em nome do pai, do filho e dos santos, a Vila canta a cidade de Pedro”, tendo André Diniz como um dos compositores. O samba se inicia com a narração de uma mulher, representando a princesa Isabel:

Eu sou a Isabel, princesa do Brasil
E convido a conhecer Petrópolis, a cidade imperial
Onde nossa história respira e minha alma vive!

Um desconforto, gerado de imediato, se intensificou com o decorrer do samba – porque, como essa pequena introdução nos dá a entender, o enredo retoma aquele velho discurso da historiografia eurocêntrica, com toda uma exaltação romantizada à figura da princesa Isabel, que representa justamente esse lado branco da história: a história coberta de flores, narrada sob uma ótica colonizadora. Isabel como destaque positivo no enredo reafirma o que estamos, a duras penas, tentando desconstruir: o processo de colonização não foi pacífico e glamouroso; foi desumano e sangrento. Cabe citar um trecho do texto Sobre o conceito da história, do crítico literário Walter Benjamin: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E assim, como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.”

Em pleno 2019, tornou-se antiquada a perpetuação da história sob esse viés, principalmente quando temos acesso às existências de Dandaras, Teresas de Benguela, mulheres que lutaram contra toda a desumanização que a escravidão ocasionou; um regime mantido sob mãos brancas, com as da princesa tão aclamada pela escola carioca. Fora que soa, no mínimo, desrespeitoso para com a história do próprio samba, ritmo tipicamente brasileiro, que foi perseguido e marginalizado justamente por representar a cultura afro-brasileira; desrespeitoso para com a figura da nossa grande Tia Ciata, matriarca do samba, que abriu as portas de sua casa para receber essa manifestação cultural e de resistência. Por isso, ouvir o trecho a seguir me foi tão doloroso:

Viva a princesa!
E o tambor que não se cala
É o canto do povo mais fiel
Ecoa meu samba no alto da serra
Na passarela os herdeiros de Isabel.

E aí veio a Mangueira acalentar meu coração com seu enredo, em que floresce o sentido político do carnaval – que nunca foi apenas folia, principalmente quando olhamos o trajeto percorrido até aqui por Dandaras, Teresas de Benguelas, Tias Ciatas… esse olhar crítico-social é obrigação!

Com o enredo “História para ninar gente grande”, que tem Deivid Domênico como um dos compositores, a Mangueira propôs abordar a perspectiva ignorada pela Vila: cantou a história não contada; gritou, na Sapucaí, que por trás do grande herói ou heroína branca há infinitas mortes negras; exemplificou o papel do materialista histórico, “de escovar a história a contrapelo”, apresentada por Benjamin no texto já mencionado – ou seja: oferecer a história a partir de um outro olhar, do olhar do oprimido.

A Estação nos colocou como protagonistas dessa história; levantou críticas ao racismo institucionalizado e naturalizado, que visa a manutenção dessa estrutura excludente e desigual, tal como está; nos lembrou que tem mais gente inconformada com o preterimento, silenciamento e apagamento do protagonismo negro na construção da história e identidade nacional. Apreciem parte desse enredo:

Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto, pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero o país que não tá no retrato!

Há uma essencialidade em trazer a figura do negro para o centro das narrativas; há uma essencialidade em se discutir racismo e a efetivação da Lei que tipifica este crime, porque enquanto vivermos sob uma falsa ideia de democracia racial, casos como o de Pedro Gonzaga – jovem de 19 anos que morreu após ser sufocado por um segurança da rede de supermercados Extra – ou o de Crispim Terral – empresário, vítima de racismo por parte do gerente da Caixa Econômica Federal e por parte da polícia – continuarão a se repetir. Tanto a rede de supermercados quanto a Caixa disseram, em nota, que condenavam veementemente práticas discriminatórias, mas e aí? Algo nas entrelinhas dessa sociedade – RACISMO – legitima práticas como a do segurança, dos policiais e do gerente, o que faz com que o sangue retinto continue nas mãos do “herói” emoldurado, mesmo tendo se passado 130 anos da abolição. Por isso, há essencialidade nesse enredo da Mangueira, porque vamos juntos na contramão de uma sociedade que, em suas práticas cotidianas, insiste em reafirmar que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.

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