Jarid Arraes. As lendas de Dandara. Porto Alegre: Liro Editora Livre, 2015.
Recentemente, a escritora e cordelista Jarid Arraes, nascida em Juazeiro do Norte (CE) em 12 de Fevereiro de 1991, lançou o livro As lendas de Dandara, que vem trazer à memória a história da guerreira negra Dandara dos Palmares. Nessa obra, a autora escolhe contar a vida da combatente através de lendas, pois a historiografia não dispõe de informações muito precisas sobre Dandara e pouco se sabe sobre ela.
Essa é uma obra que mescla história, um pouco de fantasia e ficção. Jarid inicia seu livro apresentando a realidade e importância da África, trazendo assim visibilidade para um continente vítima de tantos preconceitos e olhares negativos. Além disso, há um resgate da ancestralidade através da religiosidade, onde podemos observar a presença dos Orixás, em especial Iansã, que está sempre conduzindo a guerreira e agindo em muitos momentos.
A criação de Dandara acontece por meio de Iansã, a Orixá dos ventos e dos raios, a deusa que comanda as tempestades e também o espírito dos mortos. Como num parto, as emoções e o desejo de conceber Dandara pulsavam latentes em seu coração. E assim, em meio à tempestade, aos trovões e sons da natureza, nascia a guerreira que traria libertação a seus irmãos e irmãs escravizados. Surgia alguém que mudaria completamente a atmosfera daquela África que estava colocada como único caminho possível.
O afeto de Iansã para com Dandara é bastante intenso, fazendo alusão ao vínculo materno. Mesmo com todo amor por sua filha, a Orixá entende o propósito para o qual ela foi criada; então, deixa a guerreira na mata para que seja encontrada por Bayô, uma mulher escravizada que tentava fugir dos capitães do mato. Iansã, extremamente revoltada com a situação, resolve ajudar a companheira, colocando Dandara no caminho que a mulher percorria para que fosse resgatada pela fugitiva. No livro fica muito evidente a noção de solidariedade entre as irmãs e irmãos pretos, pois eles entendem a necessidade de manterem a união como forma de resistência em meio à escravidão.
Dandara inicia sua vida em Palmares criando cada vez mais um sentimento de amor e pertencimento pelo lugar e pelas pessoas. De todas as tarefas que lhe eram designadas, a menina não sentia satisfação por nenhuma; gostava muito mais de jogar capoeira, lutar e falar sobre batalhas, funções atribuídas aos homens do quilombo. Isso provoca uma reflexão sobre os papéis que as mulheres desempenhavam naquele contexto, a necessidade de repensar a questão do gênero e as noções do que é tido como “natural”.
O machismo determinava o lugar onde Dandara deveria estar e o que ela deveria fazer; qualquer tipo de fuga a essa norma causava espanto e desconfiança. Por isso, a guerreira precisava provar sua independência a todo tempo, mostrar que era capaz e competente para liderar Palmares. Por mais que essa fosse sua missão, e ela o fizesse todos os dias, as pessoas ainda esboçavam dúvidas.
A relação materna se faz muito presente na narrativa, e podemos observá-la pelo vínculo que Dandara estabelece com Bayô, mesmo sabendo que não havia sido gerada em seu ventre. Ainda assim, a combatente desenvolve um carinho e cuidado muito forte por Bayô, cuidado esse que se apresenta em muitas situações: uma delas ocorre quando um capitão do mato tenta capturar a mulher, acertando-a com um tiro, e Dandara se dispõe a tratar dela de forma heroica e cautelosa.
A figura de Zumbi aparece produzindo uma bonita história de amor, mas esse romance demora algum tempo para se concretizar, devido a uma série de dificuldades que o casal enfrenta. Uma delas é a atitude machista de Zumbi ao rejeitar os planos de Dandara, supondo que ela não era uma guerreira boa o suficiente e que aquela não seria sua função. Ele também tenta disfarçar e até mesmo esconder esse envolvimento amoroso, tratando-a como um objeto a ser escondido. Esse momento abre uma possibilidade para pensarmos a questão da solidão da mulher negra, que se dá exatamente por esse preterimento e isolamento afetivo.
Mesmo com todas as adversidades encontradas, Dandara se mantém firme, cumprindo bravamente o propósito de Iansã. Como uma boa figura lendária, Dandara realiza aventuras impressionantes, como atacar um navio negreiro sozinha e invadir a casa grande, salvando muitos de seus irmãos. Ela jamais se desvia do objetivo de libertar os escravos, mas isso não significa que seja perfeita ou jamais cometa falhas. Apesar da vontade de batalhar por liberdade, Dandara não é somente heroína: ela também erra, sofre e ama. Sua humanidade não existe sem sua meta; seu propósito não se executaria sem seu grupo unido.
Apesar de ser voltado para o público adulto e adolescente, As lendas de Dandara concede um material extraordinário para os mais jovens, e pode ser lido para crianças com a intermediação de uma pessoa adulta, por abordar questões um pouco mais complexas como a violência, o tráfico humano e a escravidão. Uma obra grandiosa que nos anuncia que Dandara existe em cada um de nós, no tempo em que aquecemos sua memória com a espera de um mundo menos desigual e mais livre, principalmente para população negra.
Vale ressaltar a colaboração artística, realizada com a participação da também escritora e ilustradora Aline Valek. As ilustrações de Aline ajudam a construir um cenário perfeitamente adequado à trama e oferecem um toque todo especial à narrativa, nos ajudando a imaginar Dandara como uma mulher forte e vibrante. Essa é Dandara: mulher, negra, guerreira, protagonista e inesquecível.