Lia Vieira. Só as Mulheres Sangram. Belo Horizonte: Nandyala, 2017
Lia Vieira, nome literário de Eliana Vieira, é uma renomada escritora no campo da Literatura Brasileira de autoria negra, com diversas publicações de contos e poemas nos Cadernos Negros, entre outras antologias no Brasil e exterior. Atua também como palestrante e ativista na formação e informação de mulheres negras; além disso, desenvolve pesquisas e estudos sobre a diversidade étnico-racial junto à ASPECAB – Associação de Pesquisa da Cultura Afro-Brasileira.
Só as mulheres sangram é uma seleção de nove contos em que Lia busca revelar os múltiplos aspectos do dia a dia dos negros. Narrados em diversos espaços, os contos relatam as vivências negras que não encontramos no cânone literário brasileiro. Ao longo do livro, somos apresentadas a questões do cotidiano, em situações nas quais é possível ver as realidades de boa parte da população negra, sobretudo de nós, mulheres.
É importante ressaltar que uma literatura que se liberta do cânone abre espaço para a possibilidade de que novas e muitas vozes se manifestem e sejam ouvidas. Dessa forma, o sujeito que sempre esteve à margem do contexto literário toma força para tornar-se protagonista. Até então, os negros e suas vidas estavam sendo vistos e retratados sob o olhar de autores brancos; assim, os papéis que vinham ocupando nas produções literárias acolhiam uma série de imagens distorcidas e moldadas pelo preconceito, em que os pretos eram apresentados como sujeitos criminosos ou malandros e as mulheres e meninas como altamente sexualizadas, quando não eram invisibilizadas. Esse retrato preconceituoso se manteve muito tempo, a ponto de criar um indivíduo que não é socialmente aceito como respeitável.
No conto “Por que Nicinha não veio?”, somos levadas à infeliz e precária realidade dos presídios. Em um contexto cruel e desprovido de esperanças, conhecemos a relação de amor e afeto entre mãe e filha, onde não há julgamento e as vistas são momentos de união e apoio.
Só um alívio entre tantas outras iguais a fazia sobrevivente: a visita de Nicinha, sua mãe. Nicinha jamais fizera julgamento do seu gesto, nunca censurara ou se referira ao acontecido.
Trazia sempre palavras confortadoras, revistas, novidades que ali não tinham eco…
Mas fazia bem o jeito bom de querer que a mãe lhe passava.
Única amiga, cumpriam juntas a pena. Uma dentro, outra fora das grades. Não faltava nunca. Tinha sempre uma “coisinha especial”.
No entanto, o sistema carcerário se mostra negligente em relação aos sentimentos da presidiária, e a indiferença e frieza são cortantes na total falta de empatia ao notificarem a ausência da mãe no dia de visita:
Em seu armário, um bilhete pregado:
“Nicinha não virá mais. Foi atropelada no percurso até aqui.
Mais informações na Administração.”
O rompimento repentino na relação harmoniosa e afetuosa, seguida do gesto desumano, mostra que além da pena estabelecida pela justiça, a punição vem pelo fato de ser mulher, negra e pobre.
Em “A paixão e o vento”, somos apresentados a Ritinha e Bira, arquétipos da negra sedutora e do negro viril. O texto conta que os protagonistas se conhecem desde que Ritinha era uma criança que treinava para ser passista na escola de samba da qual o homem faz parte, que desde então nutre um desejo pela jovem. O dilema de render-se ou não aos encantos da menina e trair sua esposa se torna mais angustiante com o passar do tempo.
Quando decide, então, consumar o ato, em meio a tanto fogo, Bira falha. Nesse momento temos a ruptura do modelo, que há tanto na literatura,quanto no imaginário popular, do negro sempre pronto para relações sexuais e de libido incontrolável.
“Bira, você brochou…” Ele vestiu a roupa em silêncio, falou para o moço da portaria: “Vê lá o que a menina quer.” Subiu seu morro. No caminho, vendeu o tamborim…”
Da sexualidade à violência contra a criança negra: em “Operação Candelária”, o texto é um resgate da chacina da Candelária, em 1993, revelando um crime orquestrado pela elite e por um grupo de mercenários, que deixou oito crianças mortas. São chocantes a certeza da impunidade e a frieza dos organizadores da barbárie; o texto nos permite notar que, para eles, a vida de jovens negros não tem valor.
Agora, naquele momento, fazia-se necessária outra demonstração de força. Se, em 1988, os políticos defendiam os chamados Direitos Humanos, em 1992, a ladainha incluía algo: o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Lia Vieira toca em outras diversas questões em toda a obra, de uma maneira que me fez refletir e até me colocar no lugar da protagonista em alguns dos casos. Pude ver, conhecer e sentir o desespero, o medo e o afeto de vários dos personagens; para além disso, percebi que muitos, senão todos, são um grito para que a figura, a literatura, a existência de nós, negras e negros, sejam consideradas, respeitadas e validadas.
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