Eliana Alves Cruz. O crime do Cais do Valongo. Rio de Janeiro: Malê, 2018.
Nascida no Rio de Janeiro, a jornalista de formação Eliana Alves Cruz acumula mais uma qualificação: a de escritora. As duas habilidades profissionais de Eliana contribuem para a sua produção literária que, embora ainda seja relativamente pequena (pensando nos materiais já publicados), possuem uma inquestionável qualidade e potencial reflexivo. Tal afirmação é nítida nas obras Água de Barrela (2015, com segunda edição em 2018) – romance vencedor da Fundação Cultural Palmares/ MINC e que se baseia numa minuciosa investigação sobre a situação negra desde o século XIX, pautada nas narrativas sobre a própria família da autora – e O crime do Cais do Valongo, objeto de análise desta resenha. Nas duas obras, Eliana nos impacta com a sua linguagem marcante e nos coloca em diálogo com as vivências negras de tempos idos. A autora também tem textos publicados em obras coletivas – entre elas, os Cadernos Negros.
Ao fazer uma leitura inicial do título e do primeiro capítulo do romance, tem-se a sensação de que a narrativa será apenas uma espécie de investigação a respeito do misterioso e brutal assassinato do inescrupuloso comerciante Bernardo Lourenço Viana. Talvez vez se tenha essa impressão porque os momentos iniciais da narrativa se assemelham à fórmula romanesca das ficções policiais. Entretanto, logo se nota que O crime do Cais do Valongo não é um romance policial que cabe em modelos já muito utilizados na nossa literatura: trata-se de uma obra profunda e complexa, visto que, ao mesmo tempo em que é ficção, é uma vitrine dos acontecimentos históricos que marcaram – e ainda marcam! – a existência negra no Brasil.
Algo que logo chama a atenção da leitora mais atenta é o fato de que a morte do comerciante é apenas uma mola propulsora, um plano de fundo para o desenvolvimento do enredo. Ao final da primeira seção do capítulo, deparamo-nos com um diferencial na estrutura da narrativa: não há apenas uma voz e, por consequência, não há só uma perspectiva; conhecemos as aventuras e angústias daquele período pelos olhos do mazombo (alcunha conferida aos filhos de portugueses nascidos nas terras colonizadas por eles) Nuno Alcântara Moutinho e por Muana, moçambicana escravizada pertencente ao finado comerciante Lourenço Viana. O enredo é marcado por movimentos constantes de ativação e desativação do foco narrativo, ou seja: em cada capítulo, compreendemos uma parte da história – e o uso do termo com “h” é proposital para reafirmar a proximidade que existe entre ficção e realidade – contada a partir do olhar de personagens periféricos, ignorados por muito tempo pela História convencional.
Embora existam dois narradores, os relatos de Muana nitidamente se sobrepõem aos de Nuno: ela representa a voz de uma figura ancestral que ecoa para nós através da narrativa de Eliana. Essa voz silenciada pela História branca encontra, enfim, espaço de propagação – e é nisso que reside a beleza impactante da obra de Alves Cruz. Através da personagem, conhecemos as nuances das diversas culturas que existem no continente africano, sem recair nos discursos de homogeneização. Nesse momento da narrativa, conhecemos, costumes, hábitos, sensações e emoções da personagem e dos que estavam próximos a ela. Em resumo, compreendemos o que estava por trás de todo corpo objetificado pela escravidão: a trajetória única de cada indivíduo e de cada povo. Pensar que cada corpo escravizado possuía uma história é bem óbvio para boa parte da população negra. Entretanto, chamo a atenção para a riqueza de detalhes e para a naturalidade com que as vivências dos personagens são apresentados à leitora. A autora do romance confere aos nossos ancestrais a digna humanização que lhes fora – e ainda é – roubada pela narrativa da branquitude. Note, leitora, que esse processo mencionado de humanização não ocorre apenas enquanto Muana e os seus estão transitando pelo continente africano; ela também se evidencia – e talvez aqui com mais força – durante a escravização dos corpos dos personagens. Graças à habilidade catártica da narrativa de Alves Cruz, conseguimos dimensionar suas dores e seus desejos de libertação do corpo. Acredito ser comum assumirmos uma postura semelhante à de Muana e a de seu interlocutor, Mr. Toole, durante a leitura de momentos que evidenciam a crueldade da escravidão: “Mister Toole ficou parado por alguns minutos, levantou-se, foi até a janela e pediu um pouco d’água. Calei-me e desceu um peso no ar e sobre o peito quando me lembrei de meus irmãos: os de sangue e os de sina”. Destaco que, é através dos relatos de Muana que se percebe com mais nitidez a caracterização de romance histórico que podemos atribuir à obra.
Outro aspecto interessante a ser destacado são os movimentos de resistência da população negra do período. Para além dos grandes movimentos que a história “oficial” nos conta à sua maneira, temos na obra de Eliana a percepção sobre sutis estratégias de subversão utilizadas pela negritude. A escravização dos corpos jamais permitirá que nenhum regime autoritário, discriminatório, vil ou estado de exceção seja capaz de controlar aquilo que somos e acreditamos, a nossa essência. Dos diversos movimentos, temos as habilidades de leitura e escrita dos idiomas dos colonizadores adquiridos secretamente por Muana, graças a seus companheiros de luta, visto que, de acordo com a narradora, “nossa maior força era a descrença deles sobre o que podíamos ou não aprender e criar”. É por conta dessa aquisição que Muana consegue ler cartas, jornais, etc., com a finalidade de proteger tanto o seu destino quanto o dos seus. Outros aspectos de resistência mencionados pelo romance são a afetividade negra estabelecida entre os personagens – reforçando a humanidade dos escravizados –; a manutenção do vínculo com os ancestrais, através da perpetuação dos ritos; a necessidade de assumir provisoriamente outras religiões para sobreviver e o discurso antimiscigenação do mazombo Nuno. Incentivo a leitora a dar uma atenção especial aos aspectos mencionados e observar a sutileza desses movimentos de busca por libertação do corpo.
É inquestionável o fato de que o romance é envolvente. Em meio às perspectivas de Muana e Nuno, recebemos pistas que nos conduzem à elucidação do misterioso assassinato do comerciante. Entretanto, reitero que o assassinato é apenas o elemento que conecta as narrações do mazombo e da moçambicana. Em cada capítulo, ficamos cada vez mais envolvidos pela exposição de Muana como se o protagonismo, na verdade, pertencesse aos escravizados da região do Valongo.
Associado a esse envolvimento promovido pelo romance, a cada início de capítulo temos um fragmento de artigos ou notícias de jornais do período em que se passa a narrativa – datados do período em que a família real portuguesa residia aqui no país – que se articulam com os eventos ficcionais praticados pelos personagens. Essa articulação proposital entre ficção e realidade faz com que os limites entre esses dois polos sejam muito tênues, promovendo uma aproximação maior entre leitora e obra. Para além disso, compreendo o romance como uma contestação de uma história considerada oficial. Em determinado momento da narrativa, Muana pede ao seu interlocutor que abra “os ouvidos e os olhos, pois estava prestes a entrar no mundo real, já que este em que estávamos era grossa mentira”. Ao longo do romance, é possível se questionar sobre até que ponto verdade e ficção se imbricam nas narrativas históricas tidas como oficiais.
Ao final da narrativa, percebemos, junto com Nuno, que os verdadeiros crimes do Cais do Valongo foram a desumanização, a objetificação e as incontáveis formas de violência sofridas pela população negra que ali chegava – talvez esses crimes tenham uma verdadeira relação metonímica com o título da obra e, com certeza, com o desta resenha. Enquanto o crime de Lourenço Viana obteve solução, o crime da escravidão continua ecoando para nós, sem uma efetiva conclusão. Continuamos reféns de uma luta constante por igualdade, tendo que subverter as estruturas racistas que ainda insistem em se propagar na sociedade brasileira. O romance de Eliana Alves Cruz possui muitas nuanças a serem exploradas e que, infelizmente, não puderam integrar esta resenha. No entanto, acredito que a análise proposta até aqui evidenciou a relevância da obra da autora, colocando-a quase como uma leitura obrigatória para se conhecer e desconstruir o mito da narrativa única.