Empoderamento como prática de enfrentamento

Joice Berth. Empoderamento. Pólen, 2019.

51jrkXZtdbL“A revolução começa comigo, no interior. É melhor reservarmos tempo para tornar nossos interiores revolucionários, nossas vidas revolucionárias, nossos relacionamentos revolucionários. A boca não vence a guerra” – é com esta citação de Toni Cadê Bambara que Joice Berth (arquiteta e urbanista, especialista em Direito Urbanístico e colunista do site Justificando) nos convida a adentrar em seu livro O que é empoderamento? e iniciar uma reflexão, sob um viés feminista interseccional, acerca do termo Empoderamento, além de levantar críticas ao esvaziamento conceitual que ele vem sofrendo. Para fortalecer seus pontos, Berth se respalda em intelectuais como Angela Davis, bell hooks, Audre Lorde, Djamila Ribeiro, Paulo Freire e outros, numa tentativa de nos tirar desse lugar comum no qual fomos colocados, para, então, pensar em empoderamento como mecanismo político de enfrentamento das opressões.

Segundo a autora, “empoderamento é instrumento de emancipação política e social”, sendo um movimento que ocorre de dentro para fora, como aponta Patrícia Hill Collins, quando fala sobre autodefinição e autoavaliação de mulheres negras – em que o primeiro seria uma forma de desafiar o conhecimento político sobre as imagens estereotipadas da mulher afro-americana; e o segundo seria, justamente, a substituição dessas imagens racistas, definida no seio do imaginário social, por imagens reais da mulher negra. A partir daí, percebemos que o empoderamento está intrinsecamente ligado muito mais ao autoconhecimento e a como se faz uso dele para enfrentar as estruturas de poder machista e racista (o individual caminha para o coletivo) do que ao simples feito de usar batom vermelho: aqui está um esvaziamento completo do termo.

O grande problema desse esvaziamento é que questões notoriamente mais importantes são deixadas de lado, para que superações individuais ganhem todos os holofotes. Pensemos, por exemplo, na concepção de feminismo posta por bell hooks, que ela diz ser um movimento para acabar com toda e qualquer dominação sexista, questionando a noção de que se pode ser feminista e antiaborto; isso nos deixa uma reflexão: quão empoderador é ser mulher e tirar o direito de escolha da outra sobre o seu próprio corpo? É dizer que lutar pela legalização do aborto é um enfrentamento a essa estrutura machista e racista – sabemos a cor da pele das mulheres que têm menos condições de custear procedimentos como este – que se sente no direito de limitar e menosprezar nossa autonomia. O que foi posto aqui é a discrepância desse esvaziamento conceitual, já que, enquanto, uma mulher é tida, por outras mulheres, como empoderada por usar batom vermelho, mulheres continuam morrendo em lugares insalubres por não terem seu direito de escolha assegurado. Ou seja, perde-se tempo, numa crise de prioridades, com questões menores; posterga-se uma discussão de grande relevância para a vida das mulheres.

Outro exemplo de como o termo empoderamento vem sendo analisado de forma rasa envolve um posicionamento da deputada federal do PDT, Tabata Amaral, que votou a favor da reforma da previdência. Muitos disseram que aquilo era empoderamento, visto que ela seguia suas convicções e ia contra a maioria de seu partido. Ora, uma reforma antipovo, como classifica a deputada federal Talíria Petrone, é tudo, menos um mecanismo para romper privilégios e estruturas; não há nada de empoderador em seguir a correnteza. A partir deste ocorrido, também é possível pensar na Teoria do Empoderamento que Berth apresenta sob o olhar da pesquisadora Rute Baquero: “A escrita sempre esteve, de alguma forma, associada ao poder” – traçando um paralelo à reação da deputa Tabata ao ter seu voto criticado, que como resposta disse não se importar se isso a tornasse impopular, já que, com a formação que possuía, conseguiria emprego onde quisesse. Baquero, ao falar da escrita, se refere ao contexto das civilizações antigas; avançamos quanto a isso – ainda que o analfabetismo seja uma realidade de muitos brasileiros. A verdade é que em cada época se produz uma ferramenta de poder, que servirá como manipulação do oprimido: hoje essa ferramenta tem outras tantas faces, como é o caso do conhecimento sistematizado, justamente este que é vociferado por Tabata Amaral. A deputada, formada em Harvard e ativista pela educação, parece desconhecer o abismo em que se encontra o país por conta da desigualdade social, que muito está atrelada à péssima educação pública. Sua fala soa como um discurso elitista e meritocrático, que nada tem a ver com empoderamento; ela, vinda da periferia, parece não saber que representa uma exceção: ir para fora do país, estudar em uma das melhores universidades do mundo, não é regra. Para sintetizar este comportamento poderia apenas citar Paulo Freire, “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”, entretanto, Berth descreve muito bem esse tipo de postura:

Muitas vezes estar imerso na realidade opressiva impede-lhe uma percepção clara de si mesmo enquanto oprimido. A este nível, a percepção de si como contrário ao opressor não significa ainda que se comprometa numa luta para superar a contradição: um polo não aspira a sua libertação, mas a sua identificação com o polo oposto. Trata-se de uma visão individualista por causa de sua identificação com o opressor que não tem consciência de si mesmo enquanto pessoa, enquanto membro de uma classe oprimida. Não é com o objetivo de serem livres que desejam a reforma agrária, mas sim para adquirir uma terra e deste modo converterem-se em proprietários ou, mais precisamente, em patrões de outros trabalhadores […] os oprimidos encontram no opressor seu ‘tipo de homem’.

Se partirmos da fala de Freire apresentada por Berth – em que diz que algumas pessoas não querem ou não aceitam a denúncia de situações opressoras, visto que elas, as opressoras, ocupam um lugar gratificante –, chegamos ao ponto no qual fica notório que, quando se fala em esvaziamento conceitual, não estamos lidando apenas com a falta de aprofundamento no tema, mas também com um mecanismo político de manutenção de privilégios. Por isso, esvaziar este conceito seria o que a autora nominou como “movimento radioativo”: o sinal de alerta que faz com que saiam em defesa do que asseguram ser seu por direito.

Uma outra forma de dificultar o empoderamento de um grupo oprimido, segundo propõe a autora, é o epistemicídio, o não reconhecimento da produção intelectual negra, resultante das práticas de apagamento e silenciamento dessas figuras: é como se a população negra não produzisse conhecimento nos diferentes campos do saber, que, segundo Sueli Carneiro sob a voz de Berth, “seria uma estratégia de genocídio de toda uma raça, autorizada pelos meios acadêmicos”. Podemos também nos lembrar de uma fala da Conceição Evaristo, em uma entrevista à BBC, em que a escritora questiona: “Que regras são essas da sociedade brasileira para vermos uma mulher virar um expoente no campo da literatura só aos 71 anos?”. Deste modo, chegamos à compreensão de empoderamento como uma luta que parte do individual e ganha notoriedade no coletivo, já que discussões como representatividade, por exemplo, passaram a ganhar espaço quando movimentos sociais (aqui, em específico, o Movimento Negro) começou a evidenciar a ausência nesses espaços, tendo as mídias sociais como uma ferramenta facilitadora para a difusão dessas discussões.

Falemos também sobre o empoderamento estético, mas dentro de uma perspectiva feminista interseccional, ou seja: importa enfatizar que o padrão estético age de maneira muito mais cruel e dolorosa quando o seu referente é a mulher negra, já que é sabido a cor da mulher que representa esse padrão de beleza. Logo, esse processo de autoaceitação e autovalorização é muito árduo, porque se está exposto todo o tempo a um ideal que é completamente oposto ao seu; é uma luta interna que se trava para conseguir construir uma noção de beleza diferente dessa que há muito vem sendo vendida e perpetuada; é ir contra a massificação; é, segundo Berth, “uma das tecnologias empregadas para sustentar e justificar o sistema de opressão e exploração de sujeitos para acúmulo de privilégios sociais”. E diante de uma sociedade descaradamente machista e racista, orgulhar-se do tom de pele, do cabelo crespo, dos lábios grossos é, sem dúvidas, um ato revolucionário; e, quando esse orgulho atinge um grupo, aí estamos diante do empoderamento capaz de balançar as estruturas e forçar a ressignificação do belo.

Finalizo com o poema “Eu também sou América”, de Langston Hughes – intelectual norte-americano – trazido por Joice, em tradução de Leo Gonçalves, justamente para que fixemos a importância e a urgência em desconstruir a inferiorização em relação à imagem do negro, para que aprendamos a engrandecer as diversas faces do belo e para que continuemos neste caminho de empoderamento estético de nossa comunidade:

Eu sou irmão negro
Eles me mandam comer na cozinha
Quando chegam as visitas
Mas eu rio
E como bem,
E cresço forte.

Amanhã
Eu estarei na mesa
Quando as visitas vierem
Ninguém ousará dizer-me
“Vá comer na cozinha”.

Então.
Além disso
Eles verão como sou bonito
E terão vergonha.
Eu também sou América.

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