
Meu processo de intimidade com a escrita foi muito difícil e muito demorado, se comparado com o de outras realidades mais privilegiadas. Cresci conhecendo escritoras novas e a tristeza me tomava quando refletia sobre os motivos que retardavam o momento em que eu me jogaria de cabeça nas letras. Acreditem, pretas, não foi por falta de amor, mas sim foi devido à resposta do meu corpo em relação aos problemas externos e internos que perseguem a todas nós.
Contextualizando esse fato, desde muito pequena tive conhecimento do que é o racismo, do que é o sexismo e do que é o machismo. Aos sete anos de idade vivi meu primeiro abuso sexual; na escola em que eu estudava o racismo era patente – vindo tanto das professoras, quanto das outras crianças. Além disso, sofria com as pressões de ter uma mãe negra vítima de um casamento abusivo. Ou seja, eu basicamente não tinha para onde correr. Mas tive a sorte de conhecer a escrita, um lugar (que deveria ser) seguro. Passei a infância escrevendo raps, poesias e contos. No entanto, a sensação de enfrentamento comigo mesma era tão grande que me senti incapaz de continuar, aliás, minha vida não era fácil e obviamente isso se refletia em cada linha escrita por aquelas mãozinhas pretas.
Anos mais tarde, a escrita bateu novamente em minha porta. Aos doze anos de idade me senti conduzida por ela de forma divina, de forma leve. Era como se estivesse nas nuvens, já que aos doze anos eu já tinha o coração de canceriana apaixonada. Obviamente, a minha insegurança me impedia de participar de qualquer concurso ou competição no meio escolar, e estava tudo bem, pois a escrita era apenas a minha manta aquecida e eu não tinha pretensão de dividi-la com mais ninguém. Teria sido perfeito trilhar um caminho fiel com a escrita da adolescência até hoje, assim, a insegurança se dissiparia à medida que a experiência se desenvolvia. Mas aconteceu de novo: o medo do enfrentamento. A vida foi ficando mais difícil e nem o amor conseguia inibir o medo que eu tinha de mim e da minha verdade. Resolvi, então, mergulhar na Literatura. O problema é que já muito nova (e acredito que a vida difícil tenha influenciado o quadro) eu havia sido diagnosticada com ansiedade compulsória, ou seja, era difícil qualquer livro prender minha atenção e me manter fiel do início ao fim. Essa frustração e a falta de possibilidades de fuga fizeram com que minha adolescência fosse marcada pelas crises de ansiedade.
Assim, a escrita descansou por anos em minha memória e passou a ser considerada como “apenas uma fase”; inclusive, eu reagia com incômodo quando alguns amigos próximos – sem conhecer minha história – afirmavam e insistiam que eu deveria embarcar no curso de Letras. Mas foi somente na fase adulta de minha vida que a escrita veio e tomou todo o seu lugar e não teve como fugir. Na metade do ano do vestibular, conheci uma grande amiga que me observava, me ouvia e me aconselhava como se fosse uma ancestral – suas palavras eram dotadas de direcionamento, maturidade e também tinham o poder de me tranquilizar. Em nossas conversas, relembrei minha história com a escrita, e suas palavras pontuais foram capazes de me convencer a mudar a opção de curso bem em cima da hora – fui de Administração para Letras. Em outras palavras, minha grande amiga me mostrou que ter medo e fugir da minha verdade poderia contribuir para uma vida de frustrações, já que caminhar para o autoconhecimento e amar aquilo que se exerce é importante para manter a nossa saúde mental. A partir daí, me senti inundada pela escrita como se tivesse doze anos outra vez. As letras me tomaram como se meu corpo fosse sua casa.
De fato, hoje a escrita é meu lugar seguro. O enfrentamento tem deixado de ser um problema e tornou-se uma solução, pois encarar a mim tem sido crucial para alcançar o sonhado autoconhecimento. Através da escrita expresso o amor, a raiva, e a insegurança que ainda existe, mas não me impede de andar. É através da escrita que faço valer minha voz, meu posicionamento e minha relevância. Hoje, digo sem hesitar que a escrita é meu porto seguro, meu lar. E quanto mais escrevo, mais me conheço e mais me amo.
Gostei do seu texto e me vi nele. Fico feliz de nós (e tantas outras companheiras pretas) estarmos felizes, confiantes e firmes com nossas canetas na mão. Escrever é abrir um caminho de muitas possibilidades. Somos múltiplas. Abraço!
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