
Sônia Fátima da Conceição é um nome da literatura negro-brasileira que demanda ser mais lembrado e estudado. Integrante do grupo Quilombhoje desde os primeiros anos, passou a acolher em sua residência as reuniões do coletivo após o “racha” que ensejou a saída de integrantes como Oswaldo de Camargo, Paulo Colina e Abelardo Rodrigues, a partir do ingresso de nomes como Jamu Minka e Esmeralda Ribeiro, que desejavam orientar os Cadernos Negros em uma direção menos acadêmica e mais popularizante. Colaboradora frequente dos volumes coletivos publicados nestes primeiros anos (havendo, inclusive, edições nos quais é a única mulher presente), Sônia Fátima publicou, em 1991, a novela Marcas sonhos e raízes, oitavo livro do projeto “Livro do autor”, que o Quilombhoje iniciara em 1984. Neste texto, pretendo trazer apenas alguns apontamentos sobre essa obra, que ainda não recebeu uma recepção crítica compatível com sua relevância.
A narrativa tem como centro a trajetória de Jofre, militante comprometido com a luta emancipatória negra –
“Vinte e sete anos, relativamente forte, estatura média, boca de branco, nariz de preto. O enorme rasta era uma reverência a Bob Marley. Viver, para Jofre, era encarar a luta contra o preconceito, de frente, sem medo. Sentia-se um verdadeiro soldado em meio a um campo de batalha.”
Em Marcas sonhos e raízes,Sônia Fátima não apenas recria literariamente a complexa dinâmica das organizações políticas (na novela, representadas pelo “Movimento de Militantes Negros – MMN”), como também expõe os diversos dilemas e contradições de seus integrantes. Recusando sujeitar-se à exploração capitalista, Jofre se vê assolado por problemas econômicos; capitulando aos valores patriarcais, encontra o fracasso afetivo ao trair sua companheira, Beokis, com outra militante; quando se vê perante questionamentos acerca de sua heterossexualidade, não hesita em recorrer à homofobia para reafirmar sua condição de “macho”; sua volúvel relação com os Orixás evidencia a instável construção de sua espiritualidade. Jofre é, afinal, um protagonista fragmentado, o que não se deve apenas a seu comprometimento com a luta política; é preciso compreendê-lo como um indivíduo que expressa subjetivamente as contradições da modernidade, algo ainda acentuado por sua condição racializada.
“Jofre sentia um fardo nas costas. Ficou preso a ele, não conseguindo levantar-se. Desfez-se, num esforço sobrehumano, daquilo que o prendia. Levantou-se rapidamente e dobrou o enorme acolchoado. […] Estava pronto para sair. Seu coração batia forte. O suor vertia, denso. Sentiu um gosto forte de madeira na boca. Os pensamentos infernizavam-no. Desesperava-se por ter que deixar o Bixiga, que a cada momento ia tomando a forma concreta de um quilombo.”
Rico em termos estéticos e simbólicos, o desfecho de Marcas sonhos e raízes se abre a múltiplas possibilidades exegéticas. A transformação de Jofre deve ser entendida em sentido concreto ou metafórico? De que modo é possível compreender a síntese com a natureza, bem como a importância da afetividade – mais especificamente, dos laços que ainda unem o protagonista a Beokis – nesse processo? Se a pluralidade de sentidos presentes nessa cena final não possibilita uma interpretação unívoca, importa nisso perceber as incertezas e dilemas de questionamentos que permanecem subjacentes à luta emancipatória negra, o que reafirma a atualidade da obra de Sônia Fátima da Conceição.
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