O “patrimônio” Sueli Carneiro

Sueli Carneiro. Escritos de uma vida. Editora Jandaíra, 2019.

Para iniciar esta resenha, preciso me valer das palavras de Djamila Ribeiro em que ela afirma que Sueli Carneiro é um “patrimônio”. O seu livro Escritos de uma vida – foco deste texto – mostra o brilhantismo da filósofa e ativista ao reunir alguns de seus principais estudos, que apresentam uma análise profunda da nossa sociedade, considerando os impactos do racismo e do sexismo.

A obra Escritos de uma vida é composta por dezoito trabalhos de Sueli, produzidos ao longo de sua trajetória intelectual. Versando sobre aspectos diversos, o livro apresenta um panorama não apenas social, mas também subjetivo acerca da população negra brasileira, especialmente das mulheres. Diante da pluralidade de questões abordadas no livro, selecionei alguns trabalhos  da filósofa que mais me tocaram, não apenas pela profundidade das pesquisas, mas pela urgência de se refletir, discutir e compreender a sociedade pelo olhar de Sueli Carneiro.

No artigo de abertura, intitulado “Mulher Negra”, há uma análise minuciosa da autora sobre a desigual condição dessas mulheres sob aspectos econômicos, educacionais, profissionais, políticos e sociais. Partindo dos dados do IBGE da década de 80, Sueli Carneiro mostra à leitora que 

“Para nós, mulheres negras, a conjugação das discriminações de raça, sexo e classe implica em tríplice militância, visto que nenhuma solução efetiva para os problemas que nos afligem pode advir da alienação de qualquer desses três fatores.”

Além disso, o texto aponta de modo interessante que as questões de gênero e raça fundamentam as desigualdades a que somos submetidas e que se refletem nas gerações atuais. No fim do texto, também há uma importante consideração sobre a necessidade de se pensar o feminismo por um viés que de fato seja abrangente para todas as possibilidades de existência feminina, especialmente negra. Infelizmente, o texto de Sueli se faz atual, porque ainda precisamos lançar luz sobre esses temas, que o racismo ainda tenta silenciar.

Pensando nos silenciamentos que ações racistas tentam impor, o artigo “‘Terra Nostra’: só para os italianos” se inicia como uma resposta à fala de um ex-deputado que exaltava a novela global de mesmo nome do artigo, que foi transmitida entre 1999 e 2000. O texto aponta os estereótipos de negritude explorados nas telenovelas e o quanto eles são úteis para a execução de um projeto de nação que não nos considera fora de posições de subserviência. A ativista evidencia, nesse texto, que a desigualdade, para nós, também reside na ficção branca. Ainda a esse propósito, cabe dizer que Sueli também comenta sobre as ficções que a branquitude tenta impor sobre nós nas suas produções não artísticas. Em “A obra civilizatória”, a escritora mostra, com ironia – talvez, deboche? –, que, embora sejamos considerados pela branquitude menos honestos, menos intelectualizados e outros tantos menos, nós não somos os autores dos maiores escândalos de corrupção, por exemplo; e o único prêmio Nobel do país pertence a um homem negro, o geógrafo Milton Santos. Infere-se, portanto, que nós nunca fomos o problema…

Vale comentar que há na antologia uma temática relevante pontuada pelo trabalho de Sueli Carneiro: o sistema de cotas. Em “Ideologia tortuosa”, texto publicado em 2002, a pesquisadora se dedica  a questionar o texto “Tortuosos Caminhos”, de César Benjamin, no qual o autor se posiciona contra a política de cotas raciais. Ainda que num primeiro momento se possa pensar que se trata de uma discussão entre autores específicos, logo se nota que o que Sueli questiona não é um texto publicado por um indivíduo, mas um discurso que – apesar dos fatos históricos e dos dados estatísticos – ainda ecoa pelo senso comum, pelas universidades, pelo Supremo Tribunal Federal. Não cito, leitora, o STF à toa: o texto “Pela permanência das cotas raciais nas universidades brasileiras”, publicado quase dez anos depois do anterior, foi feito para uma audiência pública na Corte que questionava a constitucionalidade das cotas para negros… Nos dois textos, a ativista desfaz o discurso de democracia racial, apontando as incoerências e as inverdades que habitam nessa ideia. Como universitária oriunda desse sistema, vi no texto de Sueli fonte e força necessária para escancarar o racismo que está por trás do discurso contrário às cotas, fruto de um projeto de nação ancorado no passado, como a própria autora nos diz. 

Em “Tempo feminino”, há um diálogo entre uma geração feminista mais velha – no caso, representada pela própria Sueli – e a próxima geração de feministas. No texto, a autora promove uma reflexão sobre as diferenças entre as lutas de antes e do agora, lembrando dos êxitos que as nossas mais velhas tiveram, das conquistas que as novas gerações alcançaram; mas também reforça os inúmeros desafios que ainda temos a alcançar. Desse texto, destaco a parte final, que assume um tom de esperança, na qual a filósofa propõe a ideia de construção de um tempo feminino:

“[…] dentro dessa opressão desenvolvemos um forte sentimento de compaixão, que nos permite hoje cuidar do mundo, reeducá-lo sem dor e sem opressão. […]

Aí aprendemos a compartilhar dores, medos e inseguranças desconhecidos pelos homens; e isso nos ensinou outro tipo de solidariedade e de sociabilidade que devemos aportar a um Tempo Feminino. Compartilhar é um verbo que as mulheres conjugam em maior escala do que os homens, e de um jeito mais doce.”

Além de pensar no tempo feminino, Sueli também aponta a movimentação das mulheres negras como um marco nas mudanças de uma luta feminista que no passado não nos enxergava. No artigo “Mulheres em movimento”, a autora mostra que

A diversificação das concepções e práticas políticas que a ótica das mulheres dos grupos subalternizados introduz no feminismo é resultado de um processo dialético que, se de um lado promove a afirmação das mulheres em geral como novos sujeitos políticos, de outro exige o reconhecimento da diversidade e desigualdades existentes entre essas mesmas mulheres.”

Esse texto de Sueli é bem preciso, porque aponta significativamente a inexistência de universalidade entre as pautas feministas; daí vem a ideia da autora de enegrecimento do feminismo. Indo mais além, a filósofa mostra os avanços que o movimento das mulheres negras promoveu e ainda promove para a perspectiva feminista, mas também para a criação de novos futuros para as nossas mulheres.

A obra de Sueli Carneiro que estou analisando é ampla, rica e sensível a muitos fatores que fazem parte da existência negra que não podiam e nem podem mais ser apartados das discussões sociais. Obviamente, esta breve resenha não deu conta de todos esses pontos, mas recomendo fortemente, leitora, que observe a densidade com que a religião é discutida (especialmente em “O poder feminino no culto aos orixás” e “Racismo, religião e crime”) e os aspectos sociopolíticos e midiáticos sobre a presença das mulheres nos espaços de poder (em “Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência”).  

Escritos de uma vida é o produto de anos de pesquisa e dedicação da autora, além de ser fonte rica dos estudos de gênero e de raça. Ainda que seja uma obra teórica, composta em sua maioria por artigos acadêmicos, o livro tem a capacidade de tocar a leitora, porque revela um árduo trabalho de uma intelectual preocupada em construir uma sociedade mais igualitária, capaz de retirar as mulheres negras daquilo que ela chama de asfixia social. Graças ao trabalho de Sueli, é possível compreender que nenhum projeto de sociedade para o nosso país pode ser pensado sem nos considerar como agentes. Caminhamos muito desde a data em que foram publicados os primeiros trabalhos de Sueli, mas ainda não resolvemos boa parte das problemáticas apontadas pela intelectual: velhos e novos desafios ainda se insurgem à nossa frente. Ainda assim, Escritos de uma vida é uma obra necessária e fundamental, pois é um patrimônio, herança deixada em vida por Sueli  para todas e todos que querem, de fato, combater o sexismo e o racismo no Brasil. 

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