Teresa Cárdenas. Mãe Sereia. Tradução de Michelle Strzoda; ilustrações de Vanina Starkoff. Pallas Mini, 2018.

Mãe Sereia é um livro infantojuvenil da escritora cubana Teresa Cárdenas, publicado em 2018 pela editora Pallas Mini. Cárdenas, que também é contadora de histórias, é autora dos livros Cartas para minha mãe e Cachorro velho, obras laureadas com vários prêmios literários – como o “La Rosa Blanca”, concedido, desde 1985, pela seção de literatura infantil da “Unión de escritores y artistas cubanos”.
Bom, pesquisar sobre Teresa, nos deparar com estas informações e perceber que ela é um nome não tão conhecido no meio literário brasileiro, só nos mostra a urgência que temos para valorizar a produção de mulheres negras latino-americanas. Precisamos lembrar que as nossas escolhas de leituras literárias e intelectuais são escolhas políticas: admiramos, lemos e escrevemos sobre Angela Davis e Toni Morrison, por exemplo, mas onde estão as nossas irmãs latino-americanas, ganhadoras de prêmios pelo mundo inteiro, sobre as quais pouco se escuta falar em terras brasileiras? Há de se pensar, refletir e questionar quão condicionados estão os nossos olhos para enxergar apenas, ou excessivamente, a produção cultural estadunidense. Certa feita, em uma vinda ao Brasil, a própria Davis fez uma crítica a esse olhar condicionado, dizendo: “Eu me sinto estranha quando sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lélia González do que vocês poderiam aprender comigo”. Essas palavras, ditas por uma estadunidense, deveriam servir como um alerta para refletirmos mais criticamente a respeito do que consumimos e assim dar o devido valor à produção cultural, intelectual e literária de mulheres negras latino-americanas.
Agora, sim, podemos mergulhar neste oceano junto à Mãe Sereia: um oceano que, como veremos, é turbulento; que guarda, em suas profundezas, gritos, marcas e sangue de corpos que sofreram os mais altos níveis de desumanização. Atravessaremos trechos duros; mas, como assertivamente pontua Conceição Evaristo: “recordar é preciso. Impreciso é muitas vezes o desenho amorfo no quase-vazio de nossa memória. Inventa-se, pois, uma história, preenche-se com ficção o vácuo produzido não pelo esquecimento, mas pelo desconhecimento do evento histórico silenciado em sua profundeza. Cultivemos as nossas molhadas lembranças, retirando o mofo do tempo. E uma imagem há de persistir sempre. A do navio” – e o evento histórico que atravessa esta narrativa é justamente o do tráfico negreiro; logo, há a impossibilidade de ser uma história inteiramente leve e suave.
Ao imergirmos nesta história, sentimos um quê de lendas, mitos, quer dizer, sentimos algo da oralidade que foi/é uma prática africana de manutenção de memória, valores e costumes ancestrais. Marcas textuais como a que inicia a narrativa, “há muitíssimo tempo”, ou ainda a indeterminação do sujeito, “dizem que decidiu se esconder”, remetem, de modo imediato, à contação de histórias – “correntes de vozes e cantos que remontavam tão longe no tempo que se desconhecia se havia sido um homem ou Deus que havia pronunciado a primeira palavra”, como conta a narradora; palavra que se mantém na sociedade através da oralidade, atravessando o tempo e desafiando a escrita que se crê a única, que se fez pétrea.
A narrativa inicia ficcionalizando a história do primeiro navio negreiro que saiu da costa africana e já nos apresenta à Mãe Sereia, afinal, toda narrativa gira ao redor desta deusa – que nos faz esperar por um milagre a qualquer momento. Será que acontece? –, que segue o navio com os negros sequestrados. Deste modo, ela é descrita como:
a deusa iorubá dos peixes e das águas salobras, mergulhou na imensidão das ondas transformada em uma enorme sereia anil e seguiu a esteira de espuma e lágrimas através do oceano.
É interessante a forma como se afirma a onisciência desta deusa: através da dor que seus filhos sentem – porque ela segue as lágrimas, algo que nem sempre estará visível, já que eles ficavam a maior parte do tempo nos porões. E, mais adiante, outra prova de sua onisciência e amor:
submersa nas águas, a sereia escutava os lamentos e as súplicas, e seu duro coração de caracol se estremecia.
A escritora constrói imagens belíssimas referentes a esta figura, atrelando suas características ao campo semântico do mar, como acabamos de ver – o “duro coração de caracol”, ou ainda, “seus olhos de búzios observavam atentamente o navio” –, o que causa em nós, leitoras, uma sensação de calmaria no meio da tragédia que ela observa; sensação que só a água salgada – ou construções imagéticas que, de tão belas e detalhadas, nos fazem criar nas mentes a nossa Mãe Sereia – é capaz de nos propiciar; e, como numa espécie de encantamento, próprios das sereias, tudo fica menos duro, pelo menos, por um pequeno instante.
Ela, que já aparece na ilustração da capa – a propósito, seria preciso outro texto dedicado à análise das ilustrações de Vanina Starkoff, que são belíssimas: em alguns momentos, por exemplo, é utilizada a técnica do pontilhismo; isto somado à paleta de cores que prevalece (azul, roxo e branco), acentua e corrobora, em certa medida, com a sensação de encantamento que a linguagem verbal reverbera. Afinal, embora esteja narrando um evento trágico da história da humanidade, ao trazer a figura da sereia, uma figura divina que faz parte da crença e cultura africana, a autora traz também o encantado, e é por isso que a linguagem verbal e a não-verbal estão em plena sintonia aqui; isso aciona o nosso conhecimento de mundo: será que é Iemanjá? Será que ela vai ser apresentada como Iemanjá? Essas cores, esses adornos, esse abebé que ela segura nas mãos, tudo remete à figura que conhecemos como a rainha do mar; até que, a narradora não nos deixa dúvidas:
Da espuma, Iemanjá Ayabá Ti Gbé Ibú Omí observava como os homens faleciam. Mas não podia intervir sem romper o pacto que os deuses fizeram com a Morte desde o início dos tempos.
Era Iemanjá! Nesta narrativa, a construção desta divindade dá-se de maneira muito diferente da que é perpetuada no imaginário social racista: aqui ela ocupa o lugar de divindade protetora; é “a Deusa Sereia, a mãe dos peixes e dos homens”; ela, que se monstra compreensível ante ao possível apagamento das histórias das divindades “que acompanhavam cada povo ou tribo desde o princípio dos séculos”, por isso eles não lhe pediam amparo:
Silêncio em suas cabeças. Não queriam mais lembrar aquelas histórias que remontavam à infância. Para quê? Quem viria salvá-lo? Por acaso o deus do tronco retumbaria sobre os brancos e os transformaria em pó? A deusa das águas doce lançaria uma avalanche de peixes azuis sobre o coração do capitão do navio e o tornaria compadecido? Os deuses antigos trariam do reino dos mortos os que haviam partido em um turbilhão de dor?.
Em certo momento da narrativa, a Mãe Sereia demonstra certa agonia por não poder fazer nada para alentar o seus:
As tiaras de seu cabelo brilhavam como estrelas, iluminando as pálpebras fechadas e as fezes dos escravos, as lunetas, as bússolas e as sextantes dos brancos. Depois de um período sem saber o que fazer, voltavas às profundezas.
– esta agonia só é possível porque ela ama aqueles sujeitos, por isso se importa; por isso, é afetada e atravessada pelas atrocidades que aqueles corpos pretos aguentam – nem todos aguentaram.
Se de um lado há um imaginário que demoniza esta e todas as outras divindades afro-brasileiras; se deste mesmo lado há um Estado que se diz laico, mas, contraditoriamente, carrega em suas notas um “Deus seja louvado”, e ainda um país que se orgulha em se dizer plural – mas que, na prática, assiste e aplaude um Estado que derruba corpos pretos todos os dias; do outro lado, o lado negro da história, há as contranarrativas, que buscam contar perspectivas desconhecidas e silenciadas, porque “recordar é preciso”. Deste último lado, há mulheres negras latino-americanas levando para as salas de aulas um prisma humanizador de corpos pretos. Nesta história, a rainha do mar liberta os seus: ela “arremeteu a calda contra o navio que se fez em pedaços sob o poderoso impacto. Homens, brancos e negros caíram no mar”; entretanto, os corpos negros não ficaram desamparados, porque “Mãe Sereia, anil e amorosa, os envolvia um a um e, depois, saíam dentre seus braços de caracol, como ágeis golfinhos e peixes de devaneios”. Nesta história, essa divindade preta cuida e protege – e, quando ela é apresentada desta forma, acontece um grande reboliço no seio da cultura brasileira que, desde a escravização, se monstra empenhada em manter à margem toda a contribuição negra na construção de uma identidade. Há uma intencionalidade em demonizar não apenas a figura de Iemanjá, mas todas as outras divindades de matriz africana, que está totalmente imbricada à noção de poder – tudo é sobre poder, o racismo é sobre poder; já que, se realmente construíssemos uma sociedade pautada na igualdade, tolerância e respeito, não haveria hierarquia de religiões, que é justamente o que a branquitude alimenta, já que é isso que a mantém no centro das narrativas. Daí a importância de histórias como Mãe Sereia: se as mais variadas faces do racismo estão tão arraigadas na sociedade, um caminho essencial a percorrer é o de oferecer às crianças e jovens – o nosso futuro –, outras muitas possibilidades de narrativas; narrativas de lutas e resistências; narrativas que trazem o corpo preto não animalizado, não sendo “a carne mais barata do mercado”, mas sim corpos protagonistas de culturas riquíssimas que fazem parte da cultura brasileira, porque não há cultura nacional sem a presença maciça desses corpos que construíram e sustentam até hoje este país no braço. Não há um futuro de paz possível que não passe pelo processo de humanizar tais corpos e que os reconheça com peça essencial para se pensar a nossa dita identidade nacional, porque a cultura brasileira é, em seu âmago, uma cultura preta: a cultura preta brasileira!
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