Djaimilia Pereira de Almeida. A Visão das Plantas. Todavia, 2020.

Djaimilia Pereira de Almeida é um dos nomes de referência da literatura portuguesa na atualidade. Autora de Esse Cabelo; Luanda, Lisboa, Paraíso (vencedor do prêmio Oceanos em 2019) e Pintando com o Pé, entre outras obras, Djaimilia e sua escrita atravessam mundos; seus livros se destacam não só em Portugal, mas também no Brasil e em outros países.
Garantindo a Djaimilia mais um lugar de destaque na premiação Oceanos, em 2020 (dessa vez, o segundo lugar), sua obra A visão das plantas– publicada pela editora Todavia em 2020 – tem como proposta narrar, em terceira pessoa, a história de um capitão de navio negreiro aposentado, vivendo a sua velhice. Inspirado em uma frase do livro Os Pescadores, de Raul Brandão, A Visão das Plantas nos convida a adentrar o lindo jardim do Capitão Celestino ao passo que nos aprofundamos, pouco a pouco, no seu brutal e terrível passado.
A história se passa no final do século XIX, e tem início com o retorno de Celestino – um ex-pirata, cujos mitos e lendas acerca de suas aventuras no mar geram curiosidade e assombro a todos – a seu país de origem, Portugal. Após muitos anos de tripulação, Celestino retorna para a casa em que viveu durante a infância; velho e praticamente cego, ele encontra no jardim da casa de sua mãe – já falecida – um refúgio para os anos de velhice.
Nas primeiras páginas do livro, confesso que me deixei simpatizar por Celestino! Totalmente alheia ao seu passado, pois não li a sinopse antes de iniciar a leitura, me permiti sentir pena do “pobre marujo” que – conforme lia as primeiras linhas do romance – acreditei ser apenas um velho homem que havia encontrado um propósito na vida ao cultivar as flores. Contudo, minha simpatia rapidamente cedeu lugar à incredulidade ao descobrir que o velho que dedicava tanto amor às flores nada mais era que um assassino cruel que havia cometido diversas brutalidades contra homens, mulheres e crianças escravizadas.
“Que quereis que vos conte? […] Matei dez mulheres, a uma delas cortei os pés. Matei centena de homens com as minhas mãos e elas não me caíram. Matei os sonhos de um milhar de outros.”
Embora tenha cometido diversas atrocidades, Celestino não demonstra sentir culpa ou remorso pelos atos que cometeu. Sabendo que nem ele, nem seu passado sangrento seriam aceitos pelas outras pessoas, Celestino se recolhe à própria solidão, empenhando-se com afinco nos cuidados do seu jardim, cercando-se de flores conforme se distancia do resto da humanidade. Fechado em seu próprio mundo, Celestino encontra nas flores uma companhia que torna sua vida alegre e que, acima de tudo, não o julga.
“As plantas viam-no como um olho de vidro vê a passagem das nuvens. Elas e o seu amigo eram seiva da mesma seiva, da mesma carne sem dó nem piedade. Atrás das costelas, no lugar do coração, o corsário tinha uma planta. E, por tudo isso, não o julgavam.”
Mesmo sendo extremamente poético, A Visão das Plantas não é uma leitura fácil devido aos questionamentos levantados pelo livro acerca das concepções sobre o certo e errado, o bem e mal, assim como as reflexões que ele nos proporciona, que só podem acontecer se deixarmos de lado nosso julgamento – o que é o mais difícil pra mim –, sendo imparciais em relação aos crimes de Celestino.
Com sua linguagem lírica, o livro nos deixa refletindo por horas sobre a dualidade que existe em cada ser humano ao mostrar aos leitores o outro lado da personalidade de uma pessoa cuja trajetória de vida é tenebrosa. Tomando por base a ideia de que ninguém é unicamente mau, A Visão das Plantas é um livro complexo e em muitas páginas “deu um nó” na minha cabeça, quando eu tentava compreender o paradoxo da “vida que floresce das mãos de um assassino”. Assassino esse que é um personagem cheio de camadas, com uma potencial crueldade que se contrapõe à delicadeza com as flores, criando o contraste perfeito que explora bem a complexidade da natureza humana e mostra aos leitores que tudo na vida possui dois lados.
Em suma, A Visão das Plantas é um obra que nos oferece um jardim de reflexões e questionamentos que desabrocham em nossa mente, no decorrer do livro, como as flores. Com uma escrita filosófica, o livro ameniza o nosso desconforto ao lidar com um tema tão perturbador e, ao mesmo tempo, cutuca a leitora ao colocar em dúvida suas convicções morais. Neste livro, Djaimilia nos convida a acompanhar em primeira mão a jornada de um assassino que busca sua redenção ao cultivar algo bom e bonito antes do fim da sua existência.
“Talvez não gostasse de pessoas, nem sentisse saudades. Aquele não era um lugar assombrado. O homem previdente que ali vivia só plantava as flores do seu sepulcro.”
Deixe um comentário