Akila Raawiya. Saia da escuridão: um guia Inicial para aprender de forma simples a verdadeira história africana. Edição independente, 2021.

Antes de falar efetivamente desta preciosidade que é o livro Saia da escuridão, de Akilah Raawiya, necessito contextualizar brevemente esse encontro que pode ser um ponto de partida essencial para qualquer pessoa preta que quer começar a entender de onde veio e para onde vai, enquanto pessoa africana (em diáspora ou não).
Conheci a página “desmentindo a história branca” no Facebook e sempre me deparava com textos e provocações cirúrgicas de Alessandra Eduardo (Akilah Raawiya): questões que nos incomodam, mas para as quais não sabemos dar nomes; processos históricos, políticos, culturais, psicológicos que recebem nomes complexos e que ela traduz brilhantemente, nos permitindo acessar suas complexidades de maneira suave. Recentemente a página (que agora também sigo no Instagram) recebeu um novo nome, fazendo ainda mais jus à sua missão, “descobrindo a história preta”; a autora também foi rebatizada como Akilah Raawiya. Acho importante o nome. Tem peso, história e porquê.
Quando pensei em voltar a escrever para o LetrasPretas, já pensava em retomar os textos com esta leitura. Começando por aqui, bem do começo, bem na raiz da questão. Afinal, existiu uma história preta muito antes das invasões, da escravidão, da Maafa. É sobre essa história que o livro joga luz, nos faz ter noção das nossas origens, capacidades, conhecimentos, competências, descobertas. Akilah nos traz muito conhecimento de forma descomplicada e didática e nos orienta para um estado de satisfação, de modo que podemos conhecer nossos passos e nos orgulhar.
Trago aqui algumas informações que me impactaram, que me iluminaram de certa forma no livro e algumas associações e reflexões sobre o desserviço da nossa sociedade.
Na escola, aprendemos História do ponto de vista do branco (e europeu); ouvimos sobre suas conquistas (furtos) e avanços (invasões), ao passo que os povos africanos somente são mencionados enquanto escravizados sem alma, sem valor, sem cultura, sem idioma, sem contribuições. De vez em quando, enquanto Agente Educadora da rede municipal, eu vejo os quadros da sala de aula sobre a família real portuguesa, a Revolução Francesa, o Iluminismo…
Na faculdade, o mesmo acontece: o sistema mantém tudo do ponto de vista mais embranquecido possível. Por exemplo, eu fiz Letras e muito pouco (quase nada) estudamos na academia sobre escritores pretos. Parecia haver um esforço tremendo até para mencionar Carolina Maria de Jesus, uma das poucas escritoras mencionadas nos meus 5 anos de graduação na Uerj.
Hoje, no dia 21 de maio, dia do profissional de Letras, como em todos os anos, muitos enviam mensagens nos parabenizando, dizendo que “é dia de Camonear, Caetanear, Machadear, Cora Coralizar”; quer dizer, que é dia de exaltar escritores brancos, colocando no meio Machado de Assis, que muitos ainda acham que também foi branco; dia de perpetuar o apagamento de escritores e escritoras negras que começaram a produzir há dezenas de milhares de anos, parece.
Akilah, no livro, relata um pouco de suas (não-) experiências na escola e também na Universidade, expondo como há uma intenção de ocultar, de tentar aniquilar a História preta, já que o objetivo é justamente não permitir que nos libertemos sabendo quem , de fato, somos. É também por isso que livros como esse são importantes: precisamos saber quem somos, de onde viemos e onde pisamos para planejar os próximos passos.
A autora africana em diáspora vai trazer conhecimentos valiosos, como a questão da diversidade. Muitos ainda pensam em África como um pequeno país cheio de gente muito preta e muito pobre, infelizmente. O continente africano, no entanto, é o mais diverso do planeta em muitos aspectos, conforme nos revela a autora. Algo que me impressionou muito foi a diversidade em relação à Língua: são mais de 2.000 grupos linguísticos, que linguistas categorizaram em poucas famílias. A “língua mãe”, a possível língua original da humanidade, aproxima-se da conhecida como “clique”, falada pelo povo Khoisan que se espalhou pelo Leste e Sul da África entre 102.000 e 142.000 anos, segundo Raawyia. Atualmente, ainda é falada por alguns povos africanos. O desenvolvimento linguístico que pode ser traçado com origem no continente africano é um grandioso saber. Quase nada é mais incrível do que ser responsável pelo desenvolvimento da linguagem humana, né? É absurdamente incrível saber que os primeiros humanos eram pretos, que somos os povos originais. Mas os cientistas, como Darwin, mantinham uma agenda, teorias que ocultavam a verdadeira história. Eles sabiam disso, mas não tinham compromisso com isso. Darwin apoiou ideias eugenistas, segundo Raawyia. E ela levanta dados e informações comprovando que, sim, são eugenistas e racistas as ideias que aprendemos na escola sobre a evolução.
Além de tudo isso, a existência de todo o gado no planeta se deve aos africanos. Tínhamos, antes da invasão, sistemas bem estruturados de governos que alguns viajantes admitiram não compreender. Akilah também fala sobre o desenvolvimento de tecnologias em África e que arqueólogos encontraram evidências de comunidades que ocuparam a África Central com a data provável de 300.000 a.C. O que ela quer dizer, e diz, é que a Europa não é a mãe da civilização coisa nenhuma, apesar de tentarem a todo custo provar isto.
Resumindo até aqui, existimos muito antes do terrorismo da escravidão. Somos pioneiros na existência, responsáveis pelo desenvolvimento da linguagem humana; desenvolvemos sistemas de governo, de defesa, tecnologias e inovações, respeitando inclusive o meio ambiente. Resistimos a desastres ambientais, a guerras biológicas; desenvolvemos técnicas de sobrevivências para lidar com inimigos (que ela vai desenvolver muito bem no livro) e resistimos também ao período mais conhecido (e divulgado) de escravidão. Houve muito antes deste terror – grandes civilizações africanas: Akilah nos faz entender que construímos riquezas e inovações antes das invasões. O Antigo Egito (Kemet), inclusive, muito retratado nas novelas como pessoas de peles branquíssimas e perucas lisas, é uma retratação falsa: as pessoas que construíram grandes monumentos e inovações que ocupavam este lugar eram pessoas de pele escura, pretas. Foi lá que criaram o conceito de tempo e o primeiro relógio, além do sistema de Educação e das primeiras grandes Universidades. A autora também comenta sobre como os Keméticos entendiam a espiritualidade como a ciência que não pode ser vista, sendo a ciência a espiritualidade que pode ser vista: uma complementava a outra. Tudo isso mantinha o equilíbrio e a harmonia.
Os mouros antigos, africanos do norte que levam conhecimentos de civilizações africanas antigas até a Europa e o que os europeus fazem com isso é o que traz a desgraça, a Maafa. Começam as dominações, as destruições, as invasões com respaldo da Bíblia, alegando o direito de escravizar; principalmente pelo fator psicológico – alegando que, sem eles, não haveria civilização. Impuseram um Deus que seria o verdadeiro e demonizaram tudo o que eles não compreendiam. Não é à toa que vemos muita gente rindo e debochando de religiões de matriz africana. Tudo o que o europeu não entendeu ele taxou de primitivo e sem valor. O que é crucial fazer é questionar tudo o que foi posto e continua sendo entubado como verdade.
Trago o provérbio africano escolhido para o livro, nesse contexto: “até que os leões tenham seus próprios historiadores, a história da caça sempre glorificará o caçador”.
Eu quis trazer uma pontinha do iceberg que este livro é de informações sobre nossa história e como construímos a base de toda civilização existente hoje. Trouxe as informações que mais me impactaram, mas há muitas outras – como a guerra pela sobrevivência, muito anterior à escravidão entre Neandertais e Homo Sapiens (nós).
Quer dizer, nós temos nossa história omitida, distorcida e muito mal contada, e precisamos resgatar o máximo do nosso passado para a construção de um futuro melhor. Por isso, Akilah nos lembra o conceito de Sankofa, símbolo de resistência africana, que significa voltar ao passado para tirar lições que devem ser aplicadas no presentes e, consequentemente, ressignificar o futuro. É preciso estar atento e em constante estudo da nossa verdadeira história.
Comece saindo da Escuridão de não se saber parte de uma ancestralidade que nos orgulha por tanto e mais.
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