Poesia sem pudor

Carmen Faustino. Estado de libido: ou poesias de prazer e cura. Oralituras, 2020.

O nome de Carmen Faustino soa familiar a qualquer pessoa que se interessa pela literatura brasileira de autoria negra. Há quase uma década, Carmen vem organizando importantes antologias – como Pretextos de mulheres negras, coorganizada com Elizandra Souza (Mjiba, 2013); a coleção Sambas Escritos, coorganizada com Maitê Freitas e Patricia Vaz (Pólen/Jandaíra, 2018); e Pilar futuro presente: uma antologia para Tula, também coorganizada com Maitê Freitas (Oralituras, 2019). Para além disso, Carmen é uma figura atuante em ações culturais periféricas, construindo vários projetos que propiciam o protagonismo de mulheres negras.

Embora pudéssemos conhecer a produção literária de Carmen Faustino através das muitas obras coletivas – mais de uma dezena – em que seus textos foram publicados, faltava um livro que proporcionasse uma visão consistente de sua poesia. Temos finalmente essa oportunidade em Estado de libido: ou poesias de prazer e cura, publicado como parte do projeto “Oralituras – escritas femininas em primeira pessoa”, criado por Maitê Freitas e concebido pelo coletivo Samba Sampa; uma obra, aliás, composta por muitas mãos negras (contando com capa e belas ilustrações de Isabela Alves “Afrobela”, projeto gráfico de Carol Zeferino e textos de Jenyffer Nascimento, Flávia Rosa e Bianca Santana).

Estado de libido pode ser lido como o produto amadurecido de um projeto estético construído ao longo de anos. Com efeito, o temário erótico já se fazia presente nos primeiros poemas publicados por Carmen Faustino em antologias; não obstante, se esses textos podiam ser lidos como produções incipientes, a fidelidade a esse repertório temático facultou o desenvolvimento de uma linguagem singular, bem como a exploração de registros literários que possibilitam à autora (re)visitar os motivos que lhe interessam de maneira inovadora e renovadora.

Como se poderia esperar, a subjetividade poética que perpassa o volume habita um corpo generificado e racializado (uma “corpa negra”, para evocar um dos neologismos presentes no volume): trata-se de um eu lírico mulher negra profundamente comprometido consigo mesmo – cujo propósito é, fundamentalmente, a busca do prazer. Contudo, precisamente pelo fato de essa voz fazer-se política – contra um mundo racista e sexista –, essa jornada não pode ser confundida com qualquer forma de hedonismo inconsequente; trata-se de um movimento que, pelo contrário, almeja minar todas as estruturas que, historicamente, impõem a subalternização desses corpos, dispondo-os a serviço de outrem. Pela via inversa, a subjetividade poética figurada por Carmen Faustino não se coloca a serviço de ninguém, a não ser de si mesma. Se, convencionalmente, o gesto feminino de entrega é percebido como um ato de submissão, na poesia de Carmen Faustino esse ato é mera encenação; trata-se de um movimento eroticamente subversivo, que não prescinde da reciprocidade (“Sem pudor / Me ajoelho / E me entrego / Para doar e receber / Tesão inteiro / Sem apelo”, lemos em “Meu orgasmo é sagrado”). De fato, a impossibilidade de qualquer renúncia a si transparece já no poema que abre o livro, “Muito prazer”: “Não vou mais / Boicotar o meu prazer / Para essa angústia covarde / Que não me pertence // […] // Pois / O tempo do orgasmo / É aquele que me desperta / Para evoluções / Para descobertas // É a cura íntima dos meus dramas / Brisa leve para os dias pesados”.

Efetivando radicalmente esse ato estético e político, Carmen Faustino lança mão de uma linguagem que incorpora tabuísmos, ressignificando-os no âmbito de um projeto literário que não transige com moralismos e que recorre à nomeação como um instrumento de autoafirmação (“Minha buceta / É o poder / Negrume mistério / De vício e prazer / Que te engole / Te domina / E você / Vaidoso / E preocupado / Apenas com seu falo / Nem vê”). Assim, em prol do prazer, a voz poética de Carmen Faustino despreza os opressores parâmetros da decência patriarcal, cantando a autodeterminação erótica como um caminho para a plena emancipação das “corpas negras”.

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