Essa dama bate bué!

Yara Nakahanda Monteiro. Essa dama bate bué! Todavia, 2021.

A publicação do romance Essa damá bate bué! marcou a estreia de Yara Nakahanda Monteiro no cenário contemporâneo das literaturas de Língua Portuguesa. A autora nasceu em Huambo, na Angola, mas cresceu e foi educada formalmente em Lisboa, Portugal. Esse trânsito entre os dois países revela parte significativa da sua identidade, porque, de acordo com a própria escritora, Angola é a sua mátria e Portugal a sua pátria, suas raízes e asas residem, respectivamente, nesses dois espaços.

As relações entre os dois países ultrapassou a realidade e adentrou a ficção de Yara. Em Essa dama bate bué!, acompanhamos a trajetória de Vitória, que, assim como a autora, nasceu em Angola, mas foi criada em Portugal, apartada das suas raízes africanas. A protagonista foge do país da Península Ibérica às vésperas do seu casamento – que não era desejado, tanto pela noiva quanto pelo noivo – para ir a Angola em busca da mãe, levando na bagagem poucas pistas de seu paradeiro, e também em busca de si mesma, isto é, da própria identidade:

“o caminho que escolho é o que preciso. Não aguento a fome que tenho da mãe. Não a posso renunciar. Mesmo assim, essa certeza não me tira o medo. Sinto-o nos pés. […] São pés com medo de fazer o seu destino.”

O retorno de Vitória a Luanda – ato que contraria o desejo do avô, mas que conta com o apoio secreto da avó – é marcado por estranhamentos, principalmente pelo aspecto racial. Embora, desde o princípio da narrativa, Vitória se identifique como mulher negra, a sua negritude é eventualmente questionada por outros personagens, por ter uma pele mais clara. Esse aspecto evidencia um dos problemas gerados pelo colonialismo em território angolano: o colorismo, arma amplamente utilizada pelos colonizadores para distinguir e para prejudicar as relações entre pessoas negras. Ao longo de sua trajetória em Angola, Vitória conhece personagens, principalmente femininas, que a auxiliam na busca por sua mãe. Mamã Ju é uma dessas personagens e é uma figura fundamental em todo esse processo, mas também é uma personagem interessante para pensar a guerra e o seu momento posterior. Ainda sobre as personagens femininas, vale comentar que narrativa possui uma forte perspectiva feminina, seja pela narração de Vitória, seja pela representação de Luanda:

A chuva já tinha tomado conta das estradas e dos passeios. […] Debaixo dos telheiros, há gente a proteger o que parece serem artigos para venda. Em casas miseráveis, jovens e velhas usam baldes ou bacias para retirarem a água que lhes entra pelo quintal.

Nas ruas, é possível distinguir mulheres que não desistem e fazem frente à intempérie das que já nem o sofrimento sentem. As primeiras levam os sapatos na mão, a carteira enfiada dentro da blusa e a cabeça protegida por um saco plástico; as outras andam como se não notassem as fortes gotas de chuva que se lhes prega à pele. Continuam todas com o destino que lhes atirou naquele dia a vida. Para elas, sol e chuva são a mesma coisa. Não vejo homens. Pergunto-me se terão fugido da chuva.

É importante evidenciar que Vitória nasceu em 1978, pouco depois do fim da Guerra de Independência (1961 a 1974) e em meio à Guerra Civil Angolana (1975 a 2002); anos depois, retornou a Angola, em 2003. Esses dados históricos e as datas mencionadas na obra são fundamentais para compreender o desenvolvimento do romance, uma vez que a mãe de Vitória, Rosa Chitula, foi uma guerrilheira revolucionária, e a diegese narrativa se desenvolve a partir das situações geradas pela guerra. A narração de Vitória – ora como personagem, ora como figura onisciente – apresenta aos leitores os horrores da guerra, que levaram a família a abandonar a vida em Huambo e ir para Portugal, bem como os contrastes sociais extremamente marcantes de uma sociedade que, um ano depois do fim da Guerra Civil, ainda aprendia a se reestruturar.

O romance se divide em trinta e cinco capítulos que se desenvolvem de forma dinâmica, pois há uma intensa relação – principalmente nos capítulos iniciais – entre passado e presente, que aparecem de forma intercalada na narrativa. Conhecemos a Vitória menina e, em poucas páginas, a Vitória adulta. Essa conexão entre os dois tempos não se restringe apenas à protagonista, mas também aos seus familiares e a Angola também. Como já comentado no parágrafo anterior, o enredo é conduzido pela perspectiva de Vitória, cuja narração de si e dos fatos familiares que lhe foram transmitidos são apresentados a partir do movimento pendular de um foco narrativo em primeira e terceira pessoa. Entretanto, nos capítulos finais – a partir do vigésimo segundo –, há uma modificação na qual quem assume a narração já não é mais a protagonista, mas uma voz narrativa que observa, oniscientemente, a (re)conexão de Vitória com a sua identidade (Wayula) e a possibilidade de reencontro a mãe. Vitória já não é mais a mesma pessoa que chegou a Luanda, e isso é evidenciado na narrativa por meio do cabelo, elemento estético, mas também metafórico que simboliza essa transformação:

Vitória está com o cabelo curto. […]

No balde do lixo da casa de banho, Juliana vê as mechas de Vitória. […]

Nandundu coloca o prato com os pães e o doce na mesa. Aos tropeços, ganha coragem e pergunta:

– Cortastes o cabelo assim, porquê?

– Não sei. Vontade, acho.

– Os teus lisos compridos eram tão lindos. Olha só para essa carapinha – e aponta para o seu cabelo. – Essa coisa não cresce.

– Cortei o mal pela raiz. Não gostas?

– ‘Tás assim… Como devo dizer… outra pessoa.

Vale destacar que Luanda é um ponto central da narrativa. A cidade se apresenta e se desenvolve diante da leitora a partir da sua cultura, como na passagem em que lemos os versos declamados pelo artista de rua, reforçando a oralidade característica do país; dos horrores da guerra, evidenciados pela eclosão da guerra no segundo capítulo; das distinções sociais, notórias, principalmente nas descrições do trânsito da cidade, no qual andam ladeados carros importados e candongueiros; dos vestígios coloniais nas relações raciais marcadas pelo colorismo, que recorrentemente são evidenciados por meio das metáforas associadas a situações do cotidiano, como ocorre na passagem da fila da boate, no capítulo sete; das suas tradições, como o ritual de renovação ao qual Vitória é submetida, ainda bebê, antes de embarcar para Portugal, no capítulo três; na agitação: “abandona a sonolência, vibra agressivamente e vai a luta da sobrevivências”, e no sossego repentino de Luanda: “Domingo. Luanda ainda não acordou. Recolheu-se no sossego. É um animal exausto que decidiu prorrogar o seu despertar”. Noutras palavras, Luanda é a dama que bate bué:

“É

Grande Dama

Viver na fé

A todos ama

Bate bué

Vem o dia

É problema

Baza a alegria

Vive dilema

Luanda minha kamba

Uau é!

Luanda minha dama

bates bué!”

Por fim, trata-se de um romance de leitura rápida, mas profunda, capaz de nos fazer refletir sobre os processos – e pessoas – que envolvem a construção da identidade. Para além de Vitória, a obra fornece, capítulo a capítulo, um panorama interessante sobre uma Angola pouco conhecida e que possui conexões profundas com a realidade brasileira. Embora não tenham sido esgotados todos os aspectos de Essa dama bate bué!, é importante ressaltar que se trata de uma obra que também fala sobre pertencimento, lar, feridas não cicatrizadas, perdão, afeto, mas, sobretudo, sobre aprender a esperar.

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