Ana Rita Santiago. Águas – Moradas de Memórias. 2ª edição. Katuka Edições, 2021.

O livro Águas – Moradas de Memórias é assinado por Ana Rita Santiago, pós-doutora, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Santiago é autora de mais dois livros: Vozes Literárias Negras (2012), resultado de sua tese de doutoramento, e Cartografias em Construção: Algumas Escritoras de Moçambique (2019), ambos publicados pela Editora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Águas – Moradas de Memórias foi escrito entre 2015 e 2017 e lançado em 2020 no formato ebook, também pela EDUFRB, e impresso pela Katuka edições. É um livro de crítica literária, que faz parte da pesquisa “Literatura Afro-feminina em trânsito: África Portuguesa e Bahia”, no qual a autora busca analisar as diferentes representações das águas na escrita negro-feminina, tendo como corpus de análise escritoras do Brasil, Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique.
A partir disso, percebemos a multiplicidade de vozes poéticas que encontraremos no transcorrer das folhas; a multiplicidade de metaforizações na maneira de cantar o mar, o rio, a chuva. “Aqui e lá” – expressão que comumente aparece no decorrer do livro –, somos convidadas a submergir nessas águas que ora nos aquecerão em pleno contentamento, como reverbera o eu-poético de Daniela Luciana Silva, “Há quem me faça sentir…/ Um templo sagrado./ Uma cachoeira na mata./ Uma deusa que dança./ Há quem me faça sentir…/…sim./ SOU TODA AMOR”; ora nos causarão um nó na garganta, afinal, o mar é também o maior depósito de nossas piores memórias; é por isso que a voz enunciadora, criada por Paulina Chiziane, se refere a ele como “mais tenebroso túmulo” e “o maior cemitério de África”. Quer dizer, entre calmarias e ressacas, nos encontraremos imersas nas escritas e vozes de Lívia Natália, Mel Adún, Rita Santana, Lita Passos, Paula Tavares, Isabel Ferreira, Paulina Chiziane, Conceição Lima, Noémia de Souza, Tânia Tomé, Nilzete Monteiro, Sónia Sultuane, Cléa Barbosa, Jocélia Fonseca e Lica Sebastião.
Ao pensarmos na configuração da literatura de autoria feminina negra, a qual está longe do reconhecimento e espaço que merece, de imediato pensamos na essencialidade deste mapeamento tão robusto, entre África e Brasil, construído por Santiago; nomes que, na maioria das vezes, não chegam à academia, nem à sala de aula do ensino básico. Então, quando traz essas escritas como corpus de sua crítica, Santiago está reafirmando a existência desses corpos, porque, como afirma Le Goff – teórico que aparece no livro para ajudar a pensar a memória –, “nomear é conhecer”. É importante acrescentar, aliás, que para além dos nomes e dos poemas dessas escritoras, Santiago acrescenta, à medida em que vão surgindo os versos de cada uma delas, uma nota de rodapé, como uma pequena biografia. Quer dizer, a leitora terá acesso a mais informações sobre aquelas vozes que ali estão se insinuando, evidenciando e demarcando que, por trás de cada uma das vozes enunciadoras, há histórias, atravessamentos, vidas; há, como diz Conceição Evaristo, “um sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria”. Ou seja, Santiago nomeia e nos apresenta cada uma das autoras, o que, sem dúvidas, nos propicia um conhecimento mais aprofundado. Essa estratégia não foi usada apenas para autoras que são analisadas de modo mais minucioso no desenrolar do livro, mas também no que tange às que aparecem para fortalecer ainda mais a escrita de Santiago; por exemplo, a própria Conceição Evaristo, Daniela Luciana Silva e Cristiane Sobral.
Como vimos, Aqui e lá nos apresenta a uma gama de escritoras negras que escreveram e estão aí escrevendo, produzindo, trazendo vozes poéticas que nos cantam o afeto, o amor, relacionando-os a água, como o eu-poético de Lívia Natália, em “Canto para Antonio”:
“Eu te amo, Antonio, e os vincos de seu rosto
lambem minhas madrugadas.
A lua se deita nos mares, a água se tinge de
negro
e tudo revela no cobalto das maresias.”
Na escrita feminina negra, o amor é um ato revolucionário, quiçá, o maior de todos, posto que dentro da historiografia literária este corpo era/é coisificado na maioria das narrativas. Um corpo que é sempre destinado a cuidar do outro, nos versos de Lívia Natália, transborda amor, tal qual o mar se transborda em água. Em Aqui e lá, as mulheres, como muito bem coloca a professora Tatiana Pequeno, na apresentação do livro:
“[…] costuram as malhas de seus tecidos subjetivos para desfazer os esgarçamentos provocados pelo olhar do Outro que localiza nelas apenas a perpetuação de uma condição colonial, subjugada e subalternizada perpetrada, inclusive, pelo imaginário do silêncio e da domesticidade que redobram sobre o corpo, as identidades e as subjetividades das mulheres negras.”
Essas escritoras nos são apresentadas em subcapítulos, mas não aparecem deslocadas umas das outras. Expliquemos melhor: Santiago constrói uma escrita de ir e vir a todo o tempo, estabelecendo semelhanças e diferenças entre a escritora que está sendo analisada no momento, com outra/as que já foram ou serão analisadas, tal qual os movimentos das ondas nas orlas. Sua escrita soa como um “indo e vindo infinito”, como canta o cancioneiro popular. Ela faz isso, por exemplo, com as escritoras Lica Sebastião, de Moçambique, e Conceição Lima, de São Tomé e Príncipe, observando que ambas constroem um enunciador que se “autoidentifica com o rio”. A voz poética de Lima afirma:
“[…] Quantas vezes nos perdemos, face a face, sem ouvir
[do rio o som que nos funda e reinventa?
Para ti esta água se liberta no meu canto, se reergue
[a velha Casa no meu pranto
Do meu seio rumoreja a nascente no que quarto.
Este amor do grande rio nos convoca.”
E a enunciadora de Sebastião nos canta:
“A minha hidrografia instável
pede que eu tenha leito, algas, variações.
E preciso de margens imensas.
O leito transborda e eu, rio, choro. […]”.
A pesquisadora, a partir do poema Água Negra – “A água é assim:/ atiçada no céu, / infinita no mar, / nômade no chão pedregoso” –, de Lívia Natália, discute a figura de um rio autoficcionalizado, aproximando-o do conceito de escrevivência cunhado por Conceição Evaristo:
“[…] a água das chuvas tem feições múltiplas: indica estado da natureza de uma cidade, insinuando uma temporalidade que se espalha por vários espaços e, respectivamente, é descrita pelo sujeito poético, em um ato de imaginação, como um ser, ainda que elemento da natureza. Neste ínterim, a voz enunciadora caracteriza a água como diversa, vigorosa, brava, devoradora e indomável, sob a esteira poética de auto (re) apresentação, relacionada com as escrevivências, a que se refere Conceição Evaristo.”
Há também uma análise quanto à construção metafórica entre as águas e as divindades femininas das religiões afro-brasileiras, em que o rio seria a personificação de Òsun e o mar seria a personificação de Iemonjà; elas são “efetiva e arquetipicamente, Mães das águas doces e salgadas respectivamente”. Essas representações trazem para o centro da narrativa discussões quanto a identidades e pertencimento. Em seu “indo e vindo infinito”, Santiago aproxima a representação de Òsun nos versos de Lívia Natália e Mel Adún, em que sinaliza a frequência da presença da “Mãe Ancestral” em suas poéticas. Em Abebe Omin, a voz enunciadora de Lívia Natália convoca Òsun para sua vida:
“Dança violenta e bela na crista de minha alma.
Uma voz de água doce sussurra
nos meus ouvidos
numa língua outra,
de uma maternidade feita de ouro e mistério.
Pisa no meu juízo com seus pés de peixes,
Naufrágios e profundezas […]”
Já em Adún, “a voz poética se confunde talvez com a voz de Òsun, ou ainda, talvez seja uma só a voz poética”, afinal, ela já abre o poema afirmando ser:
“Sou enchente
Das águas profundas
Escuras
Poço sem fundo
Fatal para os desavisados
Farta para os que com cuidado
Se agacham para pedir:
sua benção, minha mãe!’ […].
Segundo Santiago, essas relações entre água e as divindades femininas sobressaem na escrita feminina negra brasileira, enquanto que na escrita de Lica Sebastião, Noémia de Souza e Tânia Tomé, todas de África, prevalecem as representações das águas como “títulos, elementos e sítios de lembranças de vozes poéticas”, como podemos verificar nos versos de Tomé: “Me ancoraste exatamente aqui onde te rio. / Ri comigo meu amor, / Vê como se amplia/ o cais”.
Por fim, Rita Santiago encerra o livro com o capítulo “Crônicas das águas”, em que as águas de suas memórias jorram em suas narrações sobre suas experiências, relações, sensações e estranhamentos das vezes que esteve lá, em África, o que ela, dentro de uma perspectiva ancestral, chama de “retorno ao rizoma”. Nesta parte do livro nós, leitoras, sentimos a presença de Santiago a partir não apenas dos relatos minuciosos que narram as ruas, os costumes, os mercados, as universidades 100% negras, as vestimentas, mas também a partir dos entrelaçamentos que ela continua a fazer – “indo e vindo infinito” – entre aqui e lá, como quando fala sobre o Chima, uma comida típica de Joanesburgo e Maputo, que “me (re) aproximou dos acaçás, dengué do meu Ilê”. Toda sua narração nos aproxima dela e de lá e, indubitavelmente,nos deixa ávidas por conhecer o continente do qual também temos uma parte. Entre idas e vindas, sempre é um retorno.
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