Heleine Fernandes. nascente. Garupa; Ksal, 2021.

nascente é o primeiro livro de poemas de Heleine Fernandes, poeta, professora e doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Talvez a leitora tenha sentido algum estranhamento com o parágrafo iniciado em letra minúscula e possa acreditar que se trata de um erro de digitação. Na verdade, a presença da letra minúscula é parte da composição da obra, tanto que todos os poemas – incluindo as epígrafes – fazem uso desse recurso.
Esse parece um detalhe simples, mas pode revelar uma chave de leitura interessante: para além de uma de uma ruptura gramatical, a ausência da inicial maiúscula mostra que a forma poética de Heleine evita particularizar as experiências – algo proporcionado pela letra maiúscula, principalmente nos nomes de pessoas –, ou seja, aborda as vivências e sentimentos do eu lírico de forma compartilhada com a leitora. Além disso, se pensarmos na função da letra minúscula numa frase e levarmos em consideração que ela não representa o começo, mas a continuidade de um enunciado, também observaremos a presença dessa ideia de prosseguimento sem fim das relações, quer sejam de violência, quer sejam de demonstrações de afeto.
O livro é composto por dezesseis poemas que são, em maioria, curtos. Apesar da curta extensão é inegável a qualidade do trabalho textual e temático de Heleine. Em relação à forma, por exemplo, o poema “kalimba” – que remete a um instrumento musical de origem africana – consegue promover, por meio de três versos em redondilha maior (que são versos compostos por sete sílabas), a sensação e o som da água no ouvido:
nas dobras do ouvido
um segredo cantado
em sílabas de água
Já no que diz respeito à temática, nota-se que boa parte dos poemas está relacionada ao retorno das reminiscências do passado (através de momentos e pessoas), à infância e à violência cotidiana. O poema “socorro ” – que pode ser o nome da mulher retratada no poema e no retrato que o acompanha –, aborda a herança valiosa recebida pelo eu lírico:
aprendi a gargalhar com ela.
o som que faz as pessoas me reconhecerem
de longe
é uma assinatura vocal dela
de quem meus músculos recordam
e rendem homenagem.
ela sim soltava boas gargalhadas insanas
onde quer que estivesse
e tirava à força
quem quer que fosse
da indiferença. […]
É preciso comentar que os poemas que fazem uma volta ao passado a partir de uma lembrança ou de uma pessoa são acompanhados por fotografias, possivelmente retiradas de um álbum familiar. As fotos selecionadas por Heleine ajudam a compor os poemas ao mesmo tempo em que trazem familiaridade para a leitora: são imagens do momento do corte de um bolo de aniversário, de crianças à beira mar, de uma mulher sentada num sofá, que é semelhante aos modelos usados nos lares dos anos oitenta e noventa.
Em “coiffeur”, acompanhamos a trajetória de um eu lírico criança que tem sua infância atravessada pelas idas a diferentes salões de beleza pela mãe:
quando eu era criança
acompanhava minha mãe
em suas idas ao cabeleireiro.
eram os anos 80
e os salões pobres chamavam
coiffeur.
posso organizar minha infância
pelos diferentes coiffeurs de minha mãe. […]
Trata-se de uma situação vivida e experienciada por boa parte das crianças negras e isso fornece mais um mecanismo de aproximação entre obra e leitora. Outro poema que promove essa sensação é “comer da mão”, que retrata um momento cotidiano da infância no qual a criança come diretamente das mãos da avó. É interessante observar o quanto o afeto do dia-a-dia está presente nos versos de Heleine. Os poemas relacionados à infância e à memória são compostos de forma a criar uma imagem familiar na mente da leitora.
Cabe comentar que essa construção fotográfica também atinge os poemas cuja temática é dedicada à violência, especialmente aquela que é institucionalizada pelo Estado brasileiro. Há três poemas em sequência que são dedicados a vítimas de violência: “operação colonial”, cujo trocadilho com operação policial evidencia o quanto essa brutalidade carrega vestígios do período escravocrata; “máscaras brancas”, que é dedicado a Evaldo Rosa dos Santos, vítima de mais de oitenta tiros disparados por soldados do exército; e “coroa”, o qual é dedicado a Marielle Franco e a sua família, e que pode ser considerado um dos poemas mais emocionantes da obra de Heleine:
o alvo era o seu rosto
solar
que sorria e mordia
palavras.
miraram o seu rosto
não apenas para olhar,
era uma invasão.
rosto é onde fica guardada
a semelhança com a mãe
com o pai
com a irmã, com a filha
onde fica gravado o nome
a ancestralidade
a semelhança com o humano
o brilho no olho
o espelho
a dignidade.
com este poema tiro
uma por uma
as balas, tecnologias de açoite,
disparadas a manda da casa-grande.
lavo o seu rosto de maré.
negro ele é
e nele eu me vejo
solar.
O poema traduz o indizível: o horror, a brutalidade, a dor. Ao mesmo tempo, reforça a potência solar que era Marielle e a sua capacidade de reluzir nos rostos de tantas outras mulheres pretas.
Os trechos da obra que coloquei nesta resenha dão a você, leitora, apenas uma amostra do trabalho cuidadoso que Heleine realizou em nascente. Apesar dos temas oscilarem entre o amor e a dor, inegavelmente é uma leitura que afeta e faz refletir. É impossível ler nascente e não sentir nascer em si o desejo de rememorar o passado, os afetos, a dor pelos que se foram brutalmente e o desejo de fazer nascer em cada um a força e a alegria que retiram quem quer que seja da indiferença.
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