Tomi Adeyemi. O legado de Orisha: filhos de sangue e ossos. Fantástica Rocco, 2018.

Eu sempre fui extremamente fã do gênero literário “fantasia”. Sempre me encantei com o clima místico, cheio de magia, enigmas e tudo o mais que a literatura fantástica pode nos proporcionar. E, como uma grande fã da saga de livros Percy Jackson e os Olimpianos, do autor Rick Riordan, o mundo da mitologia, com seus deuses e seres mitológicos, é o que mais me atrai numa leitura. Entretanto, com o passar dos anos fui me frustrando com o gênero por sempre entregar “mais do mesmo”: uma mitologia eurocentrada, voltada – em sua grande maioria – para a mitologia grega, com personagens que nada compartilhavam em comum comigo. Por isso vocês, caras leitoras, podem imaginar o tamanho da minha felicidade quando me deparei com um livro com 100% dos personagens negros. E minha felicidade só aumentou quando li a sinopse e vi que se tratava de uma mitologia iorubá, sim, isso mesmo que vocês acabaram de ler: um livro de fantasia baseado na mitologia iorubá, com deusas e deuses negros!
Publicado no ano de 2018 pela editora Fantástica Rocco, Filhos de Sangue e Ossos é o primeiro livro da trilogia O Legado de Orisha, escrito pela autora norte-americana Tomi Adeyemi. Graduada em literatura pela universidade de Harvard, Tomi ganhou uma bolsa para estudar literatura africana na Bahia, e foram a cidade de Salvador e o Candomblé que serviram de inspiração para a criação da sua primeira obra.
Fiel à fórmula dos livros de fantasia, logo nas primeiras páginas a obra explica como são dividos os reinos, deuses e clãs da história antes de nos introduzir por completo no seu universo mitológico. Contudo, diferentemente dos demais livros de fantasia que já li, dessa vez os deuses são familiares para o público brasileiro: Xangô, Ogum, Oyá, Iemanjá, Oxumarê, entre outras divindades do candomblé, compõem o enredo deste livro.
Outra coisa que vale a pena destacar aqui é que o livro conta com uma introdução que explica, para quem não tem muito conhecimento sobre a mitologia iorubá, a simbologia de cada orixá e os elementos regidos por cada um deles. Outra coisa muito interessante também é que o livro traz em suas últimas páginas um glossário que traduz os termos em iorubá citados na história.
Pois bem, Orisha é um reino cuja magia e conexão com os deuses – o asé, como é chamado no livro e conhecido por nós, brasileiras e brasileiros, como “axé” – foi extirpada da terra de maneira violenta e cruel. Os majis, pessoas agraciadas com poderes mágicos pelos deuses, foram brutalmente perseguidos e massacrados pelo rei. As únicas heranças da magia ancestral que restaram no reino de Orisha foram os divinais, filhos dos majis, que só foram poupados da morte porque, quando ocorreu o massacre, eram jovens demais para despertar poderes mágicos e jamais os despertariam, uma vez que a conexão entre deuses e humanos fora extinta.
A partir dessa introdução, somos apresentadas à narradora principal da história. Zélie é uma adolescente divinal que teve a vida marcada pela perseguição e brutalidade das autoridades contra seu povo, traçando um paralelo direto com tantos outros jovens negros que sofrem com a brutalidade policial na vida real. De modo muito similar à sociedade fora da ficção, no reino de Orisha acontece uma divisão social e racial, na qual as pessoas que possuem a pele mais clara têm mais oportunidades de ascensão no reino, em detrimento das que possuem a pele mais escura. Nossa heroína, Zélie, encontra-se na parte mais baixa da pirâmide social, pois além de possuir a pele escura e os cabelos brancos – que é uma característica marcante dos divinais – pertence a uma raça marginalizada, oprimida e perseguida, que durante anos se manteve à margem da sociedade, impedida de exercer sua fé e ancestralidade, devido ao medo de morrer por simplesmente ser o que é. Isso fez com que Zélie e seu irmão Tzain precisassem sempre resistir às injustiças do mundo em que vivem e lutar por suas sobrevivências.
“Eles mataram minha mãe. Eles tomaram nossa magia. Eles tentaram nos enterrar. Agora, nos ressurgimos!”
Além do ponto de vista de Zélie, temos também a história narrada pelos pontos de vista de Inan e Amari, os filhos do rei. Inan, o herdeiro do trono, encontra-se no lado opressor da sociedade orishiana e, consequentemente, possui uma visão preconceituosa sobre os divinais e a magia, enxergando-os como uma ameaça à suposta paz e à estabilidade do reino. Em contrapartida, Amari, embora tenha nascido privilegiada, não concorda com as injustiças cometidas contra os divinais e, por isso, decide fugir após presenciar sua melhor amiga – uma serva divinal – ser executada por seu pai. Porém, Amari parte levando consigo um pergaminho mágico capaz de despertar a magia de um divinal, quando tocado por um.
A vida dos três personagens se cruzam quando Zélie ajuda a princesa a escapar dos guardas reais. Decididas a acabar com a tirania do rei e libertar os divinais de toda a opressão que sofreram ao longo dos anos, Zélie e Amari partem juntas na perigosa jornada para trazer o asé de volta ao reino de Orisha.
“Sem magia, eles nunca nos tratarão com respeito. Precisam saber que podemos revidar. Se queimam nossa casa… Eu queimo a deles também.”
Eu não tenho palavras para expressar quão mágica foi a experiência de ler este livro! Filhos de Sangue e Ossos é uma leitura cativante do início ao fim, que nos faz embarcar em um cenário incrível de uma cultura pouco comentada no mundo literário. Muito mais do que simplesmente narrar a jornada do herói, a autora e cada elemento do livro falam sobre força, resistência e ancestralidade. Com uma linguagem simples, a autora encontra formas mais “brandas” de abordar temas pesados e dolorosos para o povo preto, como o preconceito que população negra de religiões de matrizes africanas sofre; a discriminação que acontece entre pessoas negras pelo fenótipo e cor de pele; a hipersexualização, o genocídio, a opressão, a violência e a perseguição. As analogias feitas pela autora são perfeitas e nos fazem perceber que a fantasia é apenas um pano de fundo para debater os problemas reais da nossa sociedade.
E o que falar dos personagens muito bem construídos e complexos desse livro?! Zélie e Amari são algumas das personagens mais fortes e encantadoras que tive a oportunidade de conhecer na literatura, e elas me trouxeram algo que eu jamais havia sentido ao ler um livro de fantasia: a representatividade.
Por isso, posso dizer que essa foi uma das minhas melhores leituras recentes.
“Você nos esmagou para construir sua monarquia sobre o nosso sangue e ossos. Seu erro foi nos deixar vivos. Foi pensar que nunca revidaríamos.”
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