Niketche: uma história de aprendizado

Paulina Chiziane. Niketche – Uma história de poligamia. Companhia de Bolso, 2021.

“Qualquer dia me pedem para segurar as rédeas do mundo. Segurar os raios de sol. Segurar uma rajada de vento. Para as mulheres o eterno conselho é: segura, fecha, cobre, esconde. Para os homens é: larga, voa, abre, mostra – pode alguém compreender as contradições desse mundo?”

Em 2015, participando de um clube de leitura no qual eu e Guilherme, um amigo, cansados da literatura que sempre chegava até nós, procurávamos livros de escritores africanos, esbarrei pela primeira vez com Niketcheque, com toda sua poesia transcendente, muito me ensinou sobre o que é ser mulher: as batalhas diárias, as fraquezas, as potências. De 2015 para cá, muito da história tinha se perdido em minha memória, mas a força desse livro nunca havia saído de dentro de mim. A releitura veio no momento certo: 2022. Mais madura, mais conectada, mais atenta às pautas de gênero e de raça. Espero que todas as descobertas e as profundezas provocadas por esse livro em mim consigam chegar até vocês.

Paulina Chiziane é uma escritora Moçambicana que não se considera uma romancista, mas sim uma contadora de histórias, e que foi a primeira mulher de Moçambique a publicar um romance. Niketche, publicado em 2002, é um livro que toda mulher preta deveria ler. A narrativa se passa em Moçambique e, nela, vemos as dores e os fardos que uma mulher carrega desde o seu nascimento; mas vemos, principalmente, a fortaleza construída quando mulheres se unem.

O livro narra a história de Rami, legítima e primeira esposa de Tony, e as quatro outras ilegítimas esposas: Julieta, Luísa, Saly e Mauá. Rami descobre que seu marido, que passava dias longe de casa, possuía outra família. A partir dessa descoberta, a mulher vai descobrindo, uma por uma, as famílias que seu esposo construíra sem o seu conhecimento e consentimento. A cada revelação, vinha a dor de uma traição, a morte de parte de um amor que há anos se construía.

“Encosto a cabeça no travesseiro e conto o número de vezes que morri”

Muitas filosofias narradas são as respostas dos questionamentos feitos por toda mulher que, assim como Rami, (sobre)vive em uma sociedade machista e patriarcal. Ao decidir fazer aulas com uma conselheira amorosa para tentar reconquistar Tony, Rami descobre que “o sensual é também cultural” e que não existem mulheres feias no mundo, pois o amor é cego. As mulheres são, apenas, diferentes.

A primeira esposa se une às outras e, com muita empatia, consegue entender as dores daquelas mulheres, o vazio e o abandono de quem não é reconhecida e não tem direitos. Cada uma delas sofria o relacionamento com Tony de formas diferentes. Elas só serviam para a reprodução e para a vaidade do marido. Objetivadas, usadas, ao léu.

Essa união fez com que Rami as ajudasse a tornarem-se independentes. Para isso, emprestou-lhes dinheiro para iniciar um negócio e cada uma foi se encontrando profissionalmente. A partir daí, todas conseguem ganhar seu próprio salário e se tornar mais independentes em relação ao marido. Rivais no amor, mas irmãs no abandono. Juntas, elas crescem.

Elas revezam o marido e as obrigações para com ele. Fazem reuniões periódicas e decidem seus futuros, entrelaçados. Compartilham o marido, as dores, os conhecimentos sobre o sagrado feminino e o prazer. A força dessa união faz Tony se sentir ameaçado por elas. Para ele, sozinhas eram inferiores; juntas, não se deixam engolir por ele.

“Somos cinco contra um. Cinco fraquezas juntas se tornam força em demasia”

Ao final do romance, cada uma encontra o seu próprio destino, a sua própria luz. Elas veem que não precisam das migalhas de Tony para serem felizes e inteiras. Elas persistem em direção aos seus sonhos, aos seus desejos e seus prazeres. Mas esse recomeço só é possível porque se fortaleceram juntas. Rami foi uma grande mãe para as outras esposas, ela as juntou e foi a catalisadora da força interior de cada uma.

Uma marca de estilo muito bonita desse romance é a forma como Paulina descreve os sentimentos e as sensações. Sempre se utilizando de fenômenos e objetos da natureza, de uma forma muito poética, com metáforas e comparações. Uma escrita, incontestavelmente, bonita. Exalando poesia por todos os capítulos.

“Chorei em liberdade, porque chorar é destino da mulher. As lágrimas que caíam lavavam o céu, lavavam a lua”.

Apesar do livro remeter a uma realidade bem dura das vidas das mulheres em Moçambique, há muitas reflexões sobre diversas questões sociais, principalmente de mulheres negras, que muito nos dão força para refletir e repensar nós mesmas, nossas feridas, cicatrizes e curas.

“As mulheres de mãos dadas podem mudar o mundo, não é, Rami”

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