Miriam Alves. Maréia. Malê, 2019.

A literatura brasileira de autoria feminina e negra se faz muito importante no cenário editorial brasileiro. Não existe um verdadeiro Brasil sem essas contribuições, por mais que, em números, isso ainda seja insuficiente. Como grande intérprete da história do Brasil, Miriam Alves nos presenteou com uma obra que, com precisão e riqueza de detalhes, nos faz entender a gênese deste país. Maréia é uma joia rara: é uma verdadeira síntese de nossa história, sem romantização.
Maréia (mar + areia) é um romance dividido em 15 capítulos que, embora à primeira vista possam parecer histórias independentes, apresentam trajetórias que vão se cruzando. Trata-se do percurso de duas famílias: a família Menezes de Albuquerque (família branca) e a família Nunes dos Santos (à qual pertence Maréia).
Fazendo um esforço para para não revelar passagens cruciais do enredo, posso afirmar que Maréia trata de um objeto que foi expropriado de um povo no continente africano e que chegou ao Brasil através de um navio negreiro. Esta peça é protegida por gêmeos – o Começo e o Fim (Opin e Bere); todavia, quando é tocada por pessoas que fizeram parte deste rapto, de forma direta ou indireta, essas ficam sujeitas a uma morte repentina.
Esse objeto-símbolo ficou guardado por anos a fio em um baú. Séculos se passaram e a família Menezes de Albuquerque enriqueceu através exploração de mão de obra escravizada e da acumulação de riquezas; nos dias atuais, são donos de indústrias e compõem a alta sociedade paulistana, sendo responsáveis, também, por um instituto cultural: a Fundação de Incentivo Cultural ACEMA. O responsável é Alfredo, único herdeiro que sobreviveu e tinha capacidade de administrar os bens herdados – até então.
Maréia Nunes Santos é maestrina: graduada em música, tocava violoncelo e flauta, muito apoiada por sua avó Dorotéia; por Tânia, sua mãe; e por Caciana, sua tia. Trata-se de uma família negra, matriarcal e musical: sempre que podiam, as mulheres se reuniam na varanda para compor e tocar, sempre com o mar ao fundo – no caso, a Baía de Guanabara. Na família, o avô Marcílio e o tio Dorival compunham também a roda, quando a Marinha lhes concedia folgas; mas o mar os levou e não trouxe de volta. O avô Marcílio sempre dizia:
“O que nos pertence retornará. O mar devolverá. Assim que as coisas são”
Integrante da Orquestra Filarmônica Municipal, Maréia é convidada para uma apresentação, como parte de um trio composto também pelas gêmeas Odara e Anaya: é a oportunidade de realizar uma apresentação apenas com instrumentistas mulheres. O patrocínio vem justamente da Fundação de Incentivo Cultural ACEMA; e isso permitirá o cruzamento das histórias paralelas, fazendo com que tudo volte para o local a que pertence:
“A certeza de que existe a renovação em tudo que enxergamos como final. As coisas findam e principiam, com a mesma energia vital”
O que me chama a atenção em Maréia é como as histórias são tecidas: Miriam Alves nos leva para o passado, para o presente e para um tempo que vai além do que se pode chamar de futuro, em movimentos que evocam as ondas. De fato, a experiência de ler Maréia pode ser comparada a um fim de tarde de um dia quente em que a gente para na beira do mar; molha os pés, as mãos, os braços, o rosto; e, por fim, mergulha e emerge na maré alta da água morna.
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