Renata Ferreira. Clarão Desassossego. Patuá, 2020.

Na resenha de hoje, mergulharemos na obra Clarão Desassossego, lançada pela editora Patuá em 2020 – o que nos permitirá mergulhar também na vida da Renata Ferreira,uma mulher negra que nasceu e vive no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Renata tem um currículo acadêmico admirável: é mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e graduada em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
A responsável por escrever a contracapa, Fabiana Farias, descreve a obra de Renata como uma poeta madura que “reverencia o cotidiano, o íntimo e a visualidade”. O olhar feminino alcança o que não se pode fotografar: é a busca pelo que não tem nome; por cenas escondidas, agora expostas, como promessas de uma escrita criativa e potente sobre o real. Como vocês podem observar, não será fácil resumir ou compactar em uma caixa as temáticas presentes nas diversas linhas que Renata expôs para o mundo, mas transcreverei e comentarei alguns trechos para tentar cumprir essa missão.
No prefácio, Juliana Carvalho afirma que Renata, na viagem proposta através da leitura, consegue levar a leitora para um lugar irreversível, um lugar subjetivo, “aquela fronteira que imaginávamos estar mais próxima, mas na verdade, esgarça-se à medida que nos aproximamos dela.” Isso já evidencia a ousadia presente no restante do livro, nítida já no primeiro poema do livro, “desassossego”, em um verso como “arrasta me para longe / ainda estou dentro de mim”, que alude à íntima imensidão que perpassa toda a obra.
Já no poema “absurdo”, Renata escreve:
“num movimento de escuta
desabito de mim
abrigo o outro”
O que talvez se possa compreender a partir desses versos é que no simples ato da escuta pode implicar uma presença tão intensa a ponto de transformar a própria subjetividade, com suas emoções, desejos e pensamentos, em um abrigo; um ato de abraçar o universo do outro. Uma mensagem de empatia, enfim; a empatia que também me afeta, na condição de mulher negra, moradora de periferia e estudante de uma universidade pública (assim como a Renata foi um dia). Leio os versos de “l’heure du thé”:
“a vida não é de se sonhar muito
quando a realidade bate à retina, os olhos inundam, deixam de
ser o espelho da alma para ser o reflexo da existência”
O que isso me diz sobre o que consigo enxergar à minha volta, ou sobre o que a escritora consegue notar na realidade dela? A cidade na qual residimos é um espaço onde diversas manifestações de arte estão presentes, mas as marcas da violência urbana ainda fazem parte da paisagem. O poema traz, ainda, as imagens de um homem ensanguentado na rua e de uma relação sexual não consentida: elementos que fazem parte das realidades que compartilhamos. Mais além, em “ordem-desordem”, o erotismo volta ao texto de Renata, que trata de relações amorosas apimentadas (sem exagero):
“5. congelada por anos, ensaio voltar à temperatura normal;
6. 37 °;
7. ter febre, talvez;
8. TRANSPIRAR;
9. perder os sentidos;
10. RE(ENCONTRAR).”
Em “construção I”, lemos:
“sou casa composta por coisas boas e ruins
[…]
às, vezes só componho o ambiente
sou janela
sou porta
sou parede
sou marca na parede
às vezes, nem poeira sou
talvez seja só sentimentos, memórias
construção abandonada por mim”
De verso em verso, percebemos como o eu lírico se reduz, diminuindo, o que é evidenciado pela diferença entre a importância, o significado e a relevância de uma janela e de uma poeira dentro de uma casa. O que isso pode sugerir sobre a relação que mantemos com a nossa própria subjetividade, e sobre como podemos habitar em nós mesmas?
Desde o início do livro, seja no prefácio ou na contracapa, muitas promessas são feitas; promessas que são cumpridas ao longo da jornada que cumprimos ao longo das páginas. Peço que leiam mulheres como Renata Ferreira – representante de vozes que, durante séculos, foram silenciadas. Clarão Desassossego é mais uma prova que uma mulher negra pode ocupar o espaço que ela quiser, como poeta e escritora, capaz de construir um lugar onde a liberdade esteja presente.
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