Luciana Diogo. Maria Firmina dos Reis: vida literária. Malê, 2022.

Luciana Diogo é uma das vozes negras atuais que se dedicam a pesquisar Maria Firmina dos Reis. Ela é, inclusive, criadora e gestora do site Memorial de Maria Firmina dos Reis e editora da revista Firminas – pensamento, estética e escrita, voltada para a produção intelectual e artística de mulheres negras. Mestra em Estudos Brasileiros, bacharel e licenciada em Ciências Sociais, atualmente Luciana é doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), desenvolvendo a pesquisa“Escrevendo para si, reinventando-se para a/o outra/o: a memória da criação e os testemunhos da invenção literária nos diários e cartas de Maria Firmina dos Reis, Ruth Guimarães, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo”.
O livro Maria Firmina dos Reis: vida literária, lançado pela editora Malê, aborda em sete capítulos aspectos da vida e das obras escritas por Maria Firmina dos Reis, uma das mulheres negras mais importantes para a construção da literatura brasileira oitocentista, que por um longo tempo foi esquecida e apagada pela historiografia literária. Nascida livre em 11 de outubro de 1825, em São Luís, no Maranhão, filha da ex-escravizada Leonor Felipa dos Reis, negra alfabetizada e letrada – algo raro para pessoas negras de seu tempo –, Maria Firmina tornou-se professora primária concursada das primeiras letras do sexo feminino na cidade de Guimarães aos 22 anos. Dedicou, assim, mais de quarenta anos de magistério e cinquenta anos à literatura.
Logo de início, na apresentação de Luciana, entendemos que Firmina nos traz uma grande representatividade, porque a ancestralidade que carrega em sua voz e em seu corpo abre portas, e sua escrita carrega “as teias de resistência negra feminina lançadas pelas canetas insubmissas”, como diz a autora. Ou seja: Firmina subverte as posições de poder ao contar histórias de pessoas negras, pessoas escravizadas, mulheres e indígenas na posição de narrador; dessa forma, atribuindo autoridade àqueles que são marginalizados pela sociedade dos Oitocentos (e, infelizmente, pela atual). A leitora, nessa perspectiva, tem acesso a outras visões de mundo, ao invés daquelas escritas por homens brancos que trazem uma carga de enviesamento ideológico que difere das escritas por pessoas subalternas. A imaginação literária e a fabulação crítica de Maria Firmina são entendidas como pontos altíssimos da escritora, que se mostra altamente qualificada e integrada aos padrões literários da época.
Ao percorrer a trajetória de Firmina, Luciana se mostra bastante consciente de abordar um recorte que enfatiza noções de gênero, raça e classe imbricados na análise. Nada tem de ingênuo o enfoque que ela dá em trazer Maria Firmina como uma intelectual e intérprete do Brasil. Aliás, quem conhecemos que estão acostumados a ocupar essas posições? Sim, isso mesmo: Homens brancos! Firmina, sem dúvida, como uma mulher negra intelectual, professora e escritora, rompe com uma tradição racista e machista proveniente da nossa estrutura social. Por isso, Firmina é inspiração para muitas de nós, mulheres negras; sobretudo, para nossa autora, Luciana Diogo, que ao longo do livro escreve uma carta para Maria Firmina em tom bem intimista, trazendo assim uma aproximação entre passado e presente e entre histórias de vida e de resistência de mulheres negras que dedicam sua vida a educar e escrever. Nesta carta, a autora busca expressar sua admiração e interesse decorrentes de muitos anos pesquisando sua vida literária, além de trazer questionamentos sobre sua trajetória e vida íntima que só a própria poderia sanar. A partir do pressuposto de que Firmina era uma mulher do seu tempo, Luciana começa a tentar imaginar como era em sua vida privada, como ensinava, como teria sido sua infância, como conseguiu vencer as barreiras sociais; ou seja, as entrelinhas que existem em trajetórias de mulheres negras e que raramente estão marcadas em textos acadêmicos. Assim, percebemos que Luciana, estrategicamente como Firmina, também procura em sua produção marcar seu “eu” de algum modo e marcar seu corpo não neutro de mãe negra, professora de sociologia, acadêmica que busca entoar em suas pesquisas as ancestralidades que vêm de narrativas subalternizadas.
“Mais uma vez fiquei intrigada: como uma mulher escravizada havia conseguido alfabetizar a própria filha, cultivar a sua inteligência, despertar nela o amor pela literatura e incentivá-la a escrever, a cantar, a pensar? Quais foram as suas estratégias? Quais foram os seus métodos?”
Continuando a tratar da trajetória de Maria Firmina, a autora nos conta como a escritora negra passou por um processo de embranquecimento por parte dos escultores e pintores que a tentaram retratar como uma mulher branca burguesa letrada de uma elite econômica, além das primeiras pesquisas que inferiram que Firmina poderia ser filha de uma mulher branca burguesa com um homem africano, por seus traços mestiços. Isso evidencia o estranhamento perante a possibilidade de que uma mulher negra, pobre, maranhense, filha de uma ex-escravizada pudesse ascender socialmente, participar da cena cultural-literária da época e também gozar de letramento e instrução. Com isso, percebemos o funcionamento das relações raciais no Brasil, junto com os preconceitos gerados por essas tensões. No mais, no campo da educação, foi pioneira a abrir uma escola mista – para meninos e meninas –, fato que incomodou os conservadores, levando Firmina a “finalizar” suas atividades com a docência em 1883; mas relatos de suas ex-alunas e ex-alunos confrontam essa informação, levando a crer que a mesma continuou lecionando, é claro que subversivamente, pelo menos até 1891. Ademais, Maria Firmina também teria alfabetizado a maioria de seus filhos adotivos (consta que ela teria no mínimo uns dez filhos adotivos, sendo uma órfã e de seus exclusivos cuidados).
Na imprensa, grande veículo de divulgação literária no século XIX, Maria Firmina consolidou caminho para ganhar seu público. Ela se dedicou a romance, poesia, enigmas, charadas, novelas, textos de prosa poética, além de produzir canções e letras de música. Publicou seu grande romance, Úrsula (1859), que lhe rendeu o pioneirismo de ser a primeira mulher negra a escrever um romance brasileiro. Publicou Gupeva (1861-1862), conto com temática indianista, abordando a perspectiva da “mestiçagem” indígena, focando em seus efeitos violentos. Publicou Cantos à beira-mar(1871), seu livro de poemas ultrarromânticos que aborda conteúdos políticos, com inovações estéticas, críticas ao patriarcalismo e até mesmo trazendo, de forma pioneira, a temática homoafetiva. Publicou A escrava (1887), narrativa na qual aborda as relações entre as maternidades negras e a escravidão e critica a sociedade patriarcal. Sobre essas publicações, Luciana busca trazer análises, além de apresentar um panorama geral de outras obras suas. Mais para o final do livro, também escreve sobre seu diário, intitulado Álbum, escrito entre 1853 e 1903, com relatos sobre si, o que permitiu maiores esclarecimentos sobre o contexto de Firmina por trás das publicações das obras.
Vale ressaltar que Maria Firmina, em sua trajetória literária, tinha um perfil combativo e crítico, atrelado à estética romântica, que trazia para a voz do narrador características de individualismo e subjetivismo, representando através de personagens negras e negros a oportunidade de narrar em primeira pessoa suas questões, desejos, visões de mundo. Instaurando aspectos de uma literatura afrodescendente, Firmina manipulava, em sua composição artística, fatores sociais e estilísticos, demonstrando grande conhecimento dos parâmetros literários do período. Em Úrsula, livro sobre o qual Luciana Diogo se debruça mais longamente em sua análise, Firmina trabalha uma “reflexão sobre a condição do negro na sociedade escravista oitocentista brasileira”, assim promovendo uma elevação moral do personagem negro que aparece como esperança no contexto pós-abolicionista – época histórica vivida por ela.
“O que vislumbramos, então, nesse horizonte firminiano que se abre? O que esta luz negra desvenda do oculto? Através dessa luminosidade negra, vemos surgir a própria imagem do sujeito negro pós abolição: serão homens e mulheres procurando consolidar um contexto que predomine a liberdade, a igualdade e a dignidade entre pessoas negras e brancas; ao mesmo tempo em que buscarão ocupar os lugares sociais nesse novo ordenamento que se desdenha, mas que ainda continuaria resistente à sua presença. Maria Firmina faz assim, um exercício de imaginar um futuro para pessoas negras na sociedade do pós-abolição, mas ela imagina um futuro que também reconcilie suas vidas com os lastros de sua ancestralidade”
Maria Firmina dos Reis morreu em 1917, em São Luís, praticamente cega e mais reclusa da vida social. Morreu, infelizmente, pouco conhecida, considerando-se o muito que contribuiu para a educação e para a literatura brasileira. Conterrânea de Gonçalves Dias, por exemplo, com quem é frequentemente comparada considerando-se o período histórico, a localização geográfica e as temáticas de conteúdo escravista presentes nas obras, não obteve o mesmo reconhecimento e posição canônica. Atribui-se o fato a Firmina não assinar diretamente seu nome, usando o pseudônimo “A maranhense”, e ao fato de ser mulher em uma sociedade patriarcal – já que, em outros quesitos, ela se assemelha a homens como Dias. Porém, sabemos que os marcadores de Firmina vão muito além de ser mulher: ela representava mudança e perspectiva de transformação social frente a uma sociedade elitista, machista e racista.
Por isso, o livro de Luciana Diogo é essencial para continuar perpetuando a memória de uma intelectual e pensadora tão importante. Como diz a autora: Maria Firmina é contundente, inspiradora, visionária e desafiadora. Maria Firmina, sempre cercada de homens (principalmente brancos): seus parentes, que a inseriram no mundo letrado e docente por suas posições, suas referências na literatura, seus objetos de comparação na historiografia literária e, postumamente, os pesquisadores que a resgataram. É importante pensar que esse legado que ela nos deixa será perpetuado por mais mulheres negras desafiadoras que prosseguirão escrevendo, ensinando, pesquisando, questionando e resistindo. Assim, ocupando os espaços que, como nos mostra Maria Firmina, também nos pertencem.
‘’… ou, quando menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras…’’
(Maria Firmina dos Reis. Úrsula, 1859)
Que emoção! Que legado maravilhoso e incentivador para nós mulheres negras brasileiras! Maria Firmina dos Reis, presente!!
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