Canção para ninar menino grande: uma história de Dororidade

Conceição Evaristo. Canção para ninar menino grande. Pallas, 2022.

“Uma gama de mulheres, um universo feminino em ebulição, mesmo quando aparentemente estático”

Resolvi iniciar o ano de 2023 com a mais nova publicação da escritora que amo: Conceição Evaristo. Confesso que a julgar pela capa – estampada com um homem negro e com o título da obra composto por substantivo masculino, logo pensei que iria, pela primeira vez, ler um romance da autora em que a personagem central seria um homem. Mas, como Conceição Evaristo sempre promete muito e entrega mais ainda, minhas primeiras impressões foram leves enganos e parecenças. Pelo menos no meu ponto de vista – que já li todos os seus romances, contos e poemas, e sei que a autora nunca deixa de lado sua condição de mulher, negra, de origem periférica e mãe –, as mulheres acabam roubando a cena com suas histórias de amores e desamores.

Apesar de conhecermos a história de Fio Jasmim de forma profunda e sermos levadas a refletir sobre a masculinidade de homens negros e como isso afeta suas relações e sua vida, para mim, a narrativa é muito mais sobre as vidas por ele atravessas, sobre os desejos das mulheres, sobre o olhar dos homens no tocante às mulheres, sobre os sonhos das mulheres, sobre seus corpos, suas escolhas. São as histórias de muitas mulheres que compõem a história de vida de um único homem. Ele, assim como o nome diz, aparece como um fio condutor, o cordão que liga as histórias dessas mulheres, que conecta Juventina a Pérola, a Neide, a Angelina, a Aurora, a Antonieta, a Dolores e a Dalva.

O romance possui uma narradora que, ainda no prefácio, escrito pela própria Conceição, afirma que vem contar aquilo que ouviu. Por esse motivo, pode vir a sofrer uma dupla traição da memória. Nesse momento, eu já não estava mais sendo capaz de distinguir se a narrativa vinha da própria Conceição ou de uma narradora-personagem. O pronome pessoal “nós”, utilizado pela narradora logo nas primeiras linhas do romance, marca uma narrativa que parte, até então, de uma pessoa que se inclui em um grupo:

“Quando Juventiva, meio sufocada, sentiu uma forte dor no peito, e o mundo rodopiou aos seus pés, ela cambaleou e, quase caindo, chamou por nós”.

Aqui eu, como mulher negra, logo me incluí nesse grupo e tive a sensação de que Juventina também estava chamando por mim.

A voz que narra essa história, ou essas histórias, trata-se de uma voz feminina, muito próxima da personagem que abre o romance e que não está sozinha, está acompanhada por outras mulheres, “Nós, suas amigas, […]”, mulheres essas que vivenciaram as mesmas experiências ou sabem de alguém que já as experimentou; “Nós, às vezes, nos embrenhamos de tal forma nas recordações do passado, que o já acontecido se levanta das vias da memória e se corporifica no presente”.

Juventina, ao abrir o romance, leva a leitora, através de sua dor, a conhecer histórias de amor. Uma dor que não permite a Juventina esquecer os detalhes, uma dor que a fazia lembrar o tempo em que era só Tina. Agora, após experimentar as dores, os amores e as vivências dela e de outras mulheres, ela carrega todas essas histórias que precisa cantar. Depois de vivenciar e ouvir tantas histórias, Tina amadurece, ganha experiência e isso vem representado em seu nome: ela agora não é mais apenas Tina, ela é Juventina Maria Perpétua. Seu nome ganhou corpo; e o sobrenome Perpétua, utilizado para nomear as flores sempre-viva e saudade, está carregado desse mesmo sentimento e de muitas lembranças.

Para muito além de amores românticos, esse livro é uma história de Sororidade. Vou mais além; como questiona Vilma Piedade, por esse conceito não dar conta de Jovens e Mulheres Pretas, portanto, acredito que se trata de uma grande história de Dororidade. A escritora e pesquisadora Vilma Piedade, em seu livro Dororidade, mostra que o conceito homônimo, cunhado por ela, parte do fato de a dor ser um fardo antigo, velho conhecido das mulheres; mas não se trata de uma dor qualquer: parte de uma Dor que só pode ser sentida a depender da cor da pele, a dor provocada em determinadas mulheres pelo machismo e pelo racismo.

Fio Jasmim é fruto do racismo e do machismo, afinal, ele não foi o príncipe eleito pela professora. Tendo perdido o papel para um menino loiro, ele agora é o homem que recebeu os conselhos dos mais velhos para dominar as mulheres, “ele foi construindo seu reino próprio”; “Ancorar seu corpo nos corpos de diversas mulheres tinha sido uma lição que Fio Jasmim aprendera com o próprio pai”; e aprendeu “[…] que as ardências da consciência, em relação ao sofrimento que ele podia causar a uma mulher, passavam rápido. Era só desviar o pensamento para as ardências do corpo”. Sendo assim, escolheu Pérola Maria como sua esposa: ela, que carrega no nome as características da feminilidade, é aquela que foi inalcançável para as outras mulheres, que não foi ouvida e a única que gerou os filhos reconhecidos por Fio Jasmim.

Foi preciso encontrar Eleonora para que Fio Jasmim virasse para suas próprias dores e percebesse que a dor trata de um sentimento que também afeta os homens e não somente as mulheres. Para perceber que a mulher está muito além do corpo. Em todo o livro se faz presente o poder feminino. O Poder Feminino que, na tradição Iorubá, segundo Vilma Piedade, aponta para um pensamento circular; portanto, se eu me reconheço no outro, eu sou porque o outro existe, eu sou porque você me reconhece. E nessa tradição, sem o Poder Feminino, nada acontece, nada nasce. Por esse motivo, para mim Canção para ninar menino grande é uma obra para refletirmos sobre o patriarcado; uma obra de exaltação ao matriarcado, à mulher. Uma reverência ao Feminismo de Escuta e Diálogo.

“Foi um sentimento que se deu de tal forma que Juventina amaria todas as mulheres de Fio Jasmim, se essa fosse uma condição para continuar sendo dele”

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: