“Filhos de Virtude e Vingança”: uma história sobre como o racismo nos adoece aos poucos

Tomi Adeyemi. O legado de Orisha: filhos de virtude e vingança. Fantástica Rocco, 2020.

Falar sobre a trilogia “O Legado de Orisha” é sempre um misto de emoções. O primeiro contato com o fantástico mundo mitológico dessa trilogia me despertou sentimentos como tristeza, felicidade, esperança, indignação, representatividade… e essa mescla de emoções se manteve presente na leitura do segundo livro desta saga!

Publicado no ano de 2020 pela editora Fantástica Rocco, Filhos de Virtude e Vingança éa tão aguardada continuação do livro Filhos de Sangue e Ossos, escrito pela autora norte-americana Tomi Adeyemi. A trilogia baseia-se na mitologia Iorubá para a construção do seu rico universo que, além da diversidade cultural, está repleto de deuses e deusas inspirados nos orixás do Candomblé.

Neste segundo livro, nossas heroínas Zélie e Amari conseguem, finalmente, trazer a magia de volta ao reino de Orisha. Contudo, o ritual realizado para trazer a magia foi tão poderoso que despertou não só os poderes dos divinais, mas também das pessoas comuns – dentre elas, os membros da monarquia.

Embora o objetivo de devolver a magia aos divinais e dar-lhes uma chance de defesa contra as opressões do reino tenha sido alcançado, a tão sonhada liberdade permanece uma conquista distante para os jovens divinais. Pois o retorno da magia não só intensificou a tensão social de ambos os lados, como também criou um enorme problema: os divinais precisavam lidar com a nobreza que continuava a odiá-los e que, naquele momento, também possuía magia para contra-atacar. E é nesse cenário que as nossas protagonistas Zélie e Amari precisam agir para impedir que uma nova guerra entre a monarquia e os divinais aconteça, mesmo que ambas estejam extremamente fragilizadas pelos acontecimentos do livro anterior.

“A magia voltou para o reino de Orisha, mas a disputa pelo poder não acabou. A guerra está apenas começando.”

Mantendo a narrativa intercalada entre Zélie, Amari e Inan, nós, leitoras, acompanhamos em primeira mão o amadurecimento das personagens, que é marcado pela dor, culpa e ressentimento que assolam nossas heroínas. A tristeza que Zélie e Amari carregam consigo pela morte de seus entes queridos durante o ritual para trazer a magia de volta faz com que a linda relação de amizade construída entre elas enfraqueça a cada capítulo, para a nossa tristeza. Tanto Zélie quanto Amari estão marcadas pela dor da perda; porém, estando em uma situação de guerra iminente, elas são obrigadas a negligenciar suas dores para lidar com situações mais urgentes, e essa atitude faz com que ambas adoeçam internamente.

“Nossa paz parece tão frágil quanto vidro, mas não posso mais me esquivar da verdade. Os maji foram silenciados por muito tempo. Se eu não falar por eles, quem falará?”

Além disso, os caminhos das duas seguem em sentidos opostos no que diz respeito ao que cada uma deseja para o futuro do reino. Para Zélie, nada é mais importante do que destruir a monarquia e libertar os divinais, mesmo que para isso seja necessário matar o herdeiro do trono e irmão de Amari, o príncipe Inan. Em contrapartida, Amari deseja se tornar rainha de Orisha de forma pacífica, sem guerra e derramamento de sangue, nutrindo a esperança de transformar o reino em um ambiente mais igualitário para todos e, é claro, poupar a vida de seu irmão.

Enquanto o primeiro livro traz uma leitura leve e fluída, repleta de ação e aventura, a leitura do segundo livro tem um ar mais sombrio e melancólico, que é consequência do turbilhão de emoções, traumas e conflitos internos que vivenciamos juntamente com as personagens. Devido ao ritmo mais lento, a continuação da trilogia constrói logo de início uma atmosfera tensa, carregada pela sensação de que o pior pode acontecer a qualquer momento.

“Não importa o que eu faça. Não importa o quanto eu lute. Os divinais nunca estarão livres.”

Diferentemente do primeiro livro, cuja premissa era debater sobre a opressão e brutalidade que as religiões de matrizes africanas sofrem na nossa sociedade, nessa continuação a autora propõe uma reflexão sobre como a constante luta contra as opressões e desigualdades pode nos enfraquecer e adoecer pouco a pouco.

Nós, pessoas negras, sofremos inúmeras agressões que criam feridas emocionais difíceis de cicatrizar; quando não damos a devida atenção a essas feridas, padecemos psicologicamente e emocionalmente. O racismo, o ódio e a intolerância ferem e adoecem, e as personagens desse livro são exemplos disso.

Essa reflexão é o que torna Filhos de Virtude e Vingança um livro tão apaixonante quanto o seu antecessor. Mesmo podendo ser considerado um livro mais “pesado” e “realista” por abordar o adoecimento emocional das personagens – e vale ressaltar que essa característica “realista” é consequência do amadurecimento das personagens, que estão deixando a adolescência para entrar na fase adulta –, o livro ainda mantém a atmosfera típica dos livros de fantasia, que transforma a nossa leitura em uma experiência mágica.

Em suma, essa é uma leitura cheia de reviravoltas, que nos faz sofrer, vibrar, sorrir, chorar e, principalmente, nos mantém segurando a respiração até a última página!

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