Mãos de mães pretas: a dança “Nunca maioridade” – e dias antes, a morte do menino Thiago

As primeiras coisas que mudam quando alguém se torna mãe são as mãos, elas passam a ficar o tempo todo ocupadas: uma ninando, balançando, carregando, acalentando a cria; e a outra para atender todas as suas necessidades.

As mãos da mãe, antes de pegar o seu filho no colo, já se encontram ocupadas de sonhos, enchem-se de futuros possíveis. Costura o sapatinho, costura depois a blusa que rasgou na brincadeira, costura sonhos…

Eu, mulher preta, que não sei se sonho em ser mãe porque temo criar um pretinho na favela, onde sonhos são cerceados e arrancados – às vezes na raiz –, sento e observo o cenário, e entro em quase transe, repensando os dias anteriores, ainda tão vívidos em mim.

É preciso toda uma aldeia para criar uma criança. Toda aldeia sofre na perda de uma. Arrancam sementes da gente o tempo inteiro. No ventre. No cerne. Nas costas, os tiros. Nos braços da mãe preta, a dor. No seu colo, o corpo; e depois, a falta…

A música entoa “me deixe passar… me deixe… eu moro ali onde tem um corpo no chão”. Penso no corpo do menino Thiago e na sua mãe Priscila.

Eu vi um menino correndo enquanto a mãe/bailarina costura, ri e sonha. Eu vejo seu menino jogar bola, ela observa e dá risada, tem jeito o menino – acredito que ela pensa nisto. Costura a camisa, ele sonha em ser camisa 10, a mãe/bailarina transborda orgulho em seu olhar.

Os relatos trazem, em vídeos, muitos verbos no futuro do pretérito: “seria um homem assim amoroso”; mães enlutadas narram as essências de seus filhos que nunca chegaram à maioridade. A partir dos verbos no futuro do pretérito, do futuro de desejos e sonhos interrompidos, tudo muda gradativamente. A canção, as expressões de orgulho passando pelas tensões e dores dilacerantes, desesperos nos tons, agudos, absurdos.

Para além da solidão preta, a dor preta, a dor da perda. Menino preto não tem tempo de viver seu amor romântico. Daí a solidão da mulher preta, seu homem morto, seu filho morto, seu sonho morto.

Seria um camisa 10, seria um homem amoroso – “A felicidade do preto é quase” – me vem à cabeça a canção “Ismália”, quando a musicista canta “Onde tem um corpo no chão…” . Ismália, a mulher que avista a lua, é a mãe que conjectura o amanhã do menino, mas vê o seu pequeno corpo estirado no chão. É Ícaro, o menino, que deseja voar alto, mas jaz ali. Ícaro me encarou em cena, bem ali caído, me lançou um olhar profundo. Ícaro me encara e continua a canção: “Cuidado, não voa tão perto do sol, eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei.” Compreendi a dor pontiaguda no meu peito.

Domingo, era Thiago alí, caído. Naquela semana, a segunda foi na quarta feira, a quarta foi amena. Crianças comentando sobre o caso do amigo morto. Detalhando. Esbravejando. Uma delas carregava a foto do corpo do menino Ícaro-Thiago e me mostrou na tela; repentinamente, gritei “apaga!”. Conversas de revolta e incompreensão. “Vamo tacar fogo!” – diz um menino de mesma idade de Thiago – eu pensei o mesmo, não nego. Mas o fogo é raiva contida em tanta dor acumulada . Raiva! Mola propulsora de doenças tantas. A morte dos nossos é também ameaça à psique dos nossos. A morte dos nossos é uma violência a nossa saúde mental.

Não filma. Corta imagens. Não chora. Sem tempo de luto, arruma tempo para luta.

Volto meu olhar para as roupas brancas e me indago qual o propósito delas, quiçá simbolizassem a paz, dias de paz, dias solares. A paz que corpos pretos não têm em vida. Também não encontram na morte – é a mãe que precisa, em meio à dor dilacerante, provar que seu menino não era traficante, mas “quem disparou usava farda, quem acusou nem lá num tava”.

“A felicidade do preto é quase”, mas o beatbox traz o esforço e a tentativa da proposta da ressignificação. A música e a dança conversam na tentativa de recosturar, eu escutava no beatbox repetidamente a palavra “poesia”. De repente, voltava Ismália. Em seguida, Ícaro me encarava de novo. Eu não conseguia entrar nas badaladas, mas, por instantes, gostei de ver a mãe sorrir novamente, e voltei à figura materna, com as mãos ocupadas, segurando seu filho e dando conta de suas demandas.

“Ser forte na dor” – cantamos como a única opção restante. Cantar a dor, a resistência. Dançar a dor, dançar a resistência. A re-existência após o trauma e as mães ali, de pé, no fim. Pensava na Priscila, a mãe do Thiago, agora vivendo aquela dor tão pulsante. Enquanto crianças, a gente brincava tão despreocupada, não sabíamos quais estatísticas nos reservava a vida. À ela, o colo vazio, o peito sangrante da mãe que enterra seu filho.

Por fim, a mão da mãe preta estica o cartaz de tantos “Ícaros” no palco. Abraçam-se, cerram os punhos.

As mães agora estão com as mãos ocupadas na luta, pois:

“A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.”

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