O resgate da poiesis

Nina Rizzi. A duração do deserto. São Paulo: Patuá, 2014.

aduracaododesertorizziA plural formação de Nina Rizzi – historiadora, escritora, tradutora, formada em artes dramáticas – e o nomadismo ao qual não hesita em entregar-se (sendo “sem raízes”, como um texto biográfico já afirmou) transparecem em A duração do deserto. Assinada por Leonardo Mathias, a capa do volume traz uma imagem que, se por um lado pode remeter ao contorno de um vulto feminino, por outro lado pode ser lida como um conjunto de vagas formações sugestivas do tipo de região mencionado no título; não obstante, é sobretudo instigante a associação que assim se estabelece entre a representação da feminilidade e territorialidade, precisamente na medida em que isso tangencia aspectos fulcrais do discurso poético encerrado no volume.

A duração do deserto é uma obra compósita; não obstante, as três partes de que é constituída – “alvorada”, “sol a pino” e “ocaso” – não me parecem propriamente dissociadas, algo já indiciado pela consistência semântica perceptível na escolha desses subtítulos. Se aqueles três momentos remetem à passagem do dia, o que metonimicamente alude à transitoriedade do tempo, isso adquire um sentido particular quando pensado em relação à paisagem desértica; no que diz respeito à ordenação do livro, pode-se indagar em que medida aquelas três partes efetivamente constituem etapas do desenvolvimento do discurso poético, que desse modo se efetiva em um tríplice processo. Torna-se assim possível pensar A duração do deserto como um livro que resgata a dimensão mais essencial da poiesis, o que lança luz sobre a diversidade formal perceptível na obra. Nessa leitura, é significativo que o (lírico) texto prefacial se encerre com um dístico que menciona “esse desejo tão puro de uma delicadeza terrível, / um silêncio que se abra no poema” – versos que conjugam elementos fundamentais da produção literária de Nina Rizzi: o desejo, o silêncio e a consciência metapoética, conceitos que forçosamente ressurgirão ao longo desta resenha. Vale notar, entretanto, que há aí uma espécie de projeto que se materializará ao longo do livro, à maneira de uma deliberada procura, do que resultará um discurso lírico singular.

Dentre o vasto conjunto de expedientes aos quais Nina Rizzi recorre ao empreender esse processo de (re)descoberta do poético, um que desde o princípio se torna evidente é o intenso diálogo com autores das mais diversas tradições literárias: Georg Trakl, Elizabeth Bishop, Manuel Bandeira e Anna Akhmátova são apenas alguns dos nomes que comparecem nas páginas de A duração do deserto, explicitando a consciência de que o texto literário não nasce no vazio. Cabe perceber, todavia, a importância da nomeação, muitas vezes já no título dos poemas: ao fazê-lo, Rizzi reitera sua posição como criadora, convertendo a obra alheia em uma matéria lírica que não hesita em revisitar, reler e esgarçar até produzir um discurso próprio e autêntico. Talvez a manifestação mais evidente disso sejam as três bandeirianas constantes da obra – ou as duas casidas a federico. Importa perceber, contudo, que a pletora de referências literárias não esgota o universo de experiências motivadoras do lirismo de Rizzi, sendo não menos constantes as referências religiosas (como os dois candomblés para nanã) e eróticas – como lemos, por exemplo, na terceira cantata pra depois do nunca mais, da qual transcrevo um trecho:

[…]
sinto frio nas extremidades e estômago
tenho um gozo profundo que me faz chorar
debaixo do cobertor amarelo que me cobre de ternura

sou um eros civilizado

não faça sexo comigo
deixa que eu faço
beijo teu sexo como a visão fidedigna de qualquer arte
fica quieta, e me deixa te caminhar, a boca, o ílio
quieta, é um chamamento ao bem-me-quer que guarda

cada pétala de mal-querer
ou não me deixe te beijar o sexo
mas me deixe
[…]

Algo que transparece nesses versos é que, na poesia de Rizzi, o desejo sempre emerge como representação, na medida em que se insere em uma complexa cadeia de metáforas, escapando aos lugares-comuns e mobilizando uma miríade de sensações e experiências; assim é que, no trecho citado, a subjetividade lírica não se limita a afirmar-se desejante, ousando representar a si mesma enquanto produtora de sentidos. Em decorrência disso, implodem as fronteiras entre a poesia e a realidade, uma vez que ambas se revelam como instâncias dessa representação cujo fundamento é a própria subjetividade poética – que, em cada poema, busca uma nova forma de dizer-se.

Se a poesia de A duração do deserto em certos momentos soa hermética, é preciso considerar que isso resulta da árdua tarefa que impôs a si mesma: enquanto processo radical de redescoberta do lirismo, a obra encerra uma difícil tarefa de reconstrução da linguagem, que é desse modo reelaborada em função de uma multiplicidade de experiências. Ao buscar o reestabelecimento do discurso poético em um sentido originário, Nina Rizzi produz uma obra que, se não se presta a leituras fáceis, resgata a experiência lírica em sua dimensão mais essencial.

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