A revolução das mjibas: poesia periférica em voz feminina

Carmen Faustino e Elizandra Souza (org.). Pretextos de mulheres negras. São Paulo: Coletivo Mjiba, 2013.

imgCrop.php1. Mjiba é um termo da língua chona que significa ‘jovem mulher revolucionária’: historicamente, as mjibas lutaram pela independência do Zimbábue, enfrentando as tropas britânicas. O termo foi escolhido em 2001 pela escritora Elizandra Souza para batizar um fanzine que perdurou até 2005, publicando poesias e textos sobre cultura negra e hip hop. Em 2004, Elizandra e duas outras mulheres negras do Grajaú, periferia da Zona Sul de São Paulo – Elisângela Souza e Thais Vitorino – criaram o evento Mjiba em Ação, que consistiu em um sarau, uma exposição de poesias e apresentação de grupos femininos de rap (Fase, Autarquia, Cindy, Harmattã e Pretas Mil). O evento teve outras três edições, em 2007, 2012 e 2014. Em 2013, o coletivo Mjiba publicou a coletânea Pretextos de mulheres negras, organizado por Carmen Faustino e Elizandra Souza – em cujo posfácio todas essas informações foram obtidas.

2. Como ressaltou Elizandra em uma entrevista acerca do volume [1], Pretextos de mulheres negras não é uma antologia: as 22 autoras presentes na obra, cada qual com 2 textos, foram convidadas a participar “como uma reunião de amigas e conhecidas”, a fim de “pluralizar essas vozes dentro da literatura periférica”. Essa informação é relevante por possibilitar uma leitura particular do conjunto de vozes presente no volume. A realização de uma antologia pressupõe sempre uma seleção a partir de critérios cuja imparcialidade, em se tratando de produções artísticas, é inevitavelmente questionável: o que determina, afinal, que uma poesia seja melhor que a outra? Seria a forma da composição, ou uma abordagem temática específica? Há algum modo de mensurar objetivamente a inspiração? Por outro lado, ao concederem às autoras a oportunidade de compor livremente os poemas presentes no volume, as organizadoras lograram realizar plenamente o objetivo de reunir uma pluralidade de vozes que representam a riqueza da poesia de autoria negra e feminina no âmbito da literatura periférica produzida em São Paulo. E isso encontra uma tradução visual perfeita na belíssima capa, assinada por Renata Felinto – artista plástica, pesquisadora e educadora, atualmente professora da Universidade Regional do Cariri –, que, ao figurar mulheres negras com diversos tons e penteados, em meio a uma profusão de cores que as une e mescla, sugere um entrelaçamento de experiências e uma busca por compartilhamento perceptível nos textos reunidos no livro. Igualmente notável é o projeto gráfico de Nina Vieira, que proporciona uma singular experiência de leitura, dialogando intensamente com cada um dos poemas constantes do volume.

3. A negritude é um tema central do livro, como se poderia esperar, perpassando muitas das poesias publicadas; não obstante, é sobretudo notável observar o modo como raça e gênero se articulam, não apenas vocalizando demandas em comum, mas também explicitando uma pluralidade de vivências. Se há muito o pensamento feminista vem alertando sobre a impossibilidade de se encontrar uma resposta única para o questionamento sobre “o que é uma mulher?”, isso se torna uma tarefa ainda mais complexa quando se trata de mulheres que sequer foram reconhecidas como tais em determinados contextos históricos, como demonstrou a (em diversos sentidos, ainda pertinente) poderosa fala de Sojourner Truth. Elis Regina, filha de imigrantes nordestinos, professora e pesquisadora das literaturas de capoeira, escreve sobre um mito de Adão e Eva recontado por Dona Marley, “nêga veia” e “recitadeira”, que problematiza uma narrativa fundadora em nossa cultura: “Porque eu sou fia das água / Minh’ancestral não é uma costela! / Porque eu sou fia das mata / Minh’ancestral não é uma costela! / Porque eu sou fia da terra / Minh’ancestral não é uma costela!”. Elidivânia Souza, baiana radicada em São Paulo que trabalha como recreadora e instrutora de musculação, trata da descoberta da própria identidade: “Estranhava minha cor, cabelos e castanhos olhos / Enquanto criança desejava a mesma aparência / Que assistia em toda parte / Questionava o meu tom de pele escura / Diferente das bonecas”. Janaína Teodoro, pedagoga e compositora, encontra no Candomblé o sentido de sua identidade: “Mamãe Oxum, de ti carrego de graciosidade / O dengo, o amor, a riqueza de fertilidade. / Obá Xireê, meus entes queridos a aconchego / Ao campo santo, Ewá a neblina o sossego / Senhora do tempo, e do destino por mim vividos”. Raquel Almeida, musicista, resgata a infância como um momento originário: “Oyá / Envolve sobre mim sua tempestade / Pois tempestiva sou / Me acalanta, em serenos sonhos de criança / Me embala nessa dança / Que não cessa e não cansa”. A historiadora Landy Freitas figura uma subjetividade que resgata em si forças telúricas: “Minha essência brota da terra batida / Do caminho descalço / Dos hibiscos vermelhos / O cemitério esquecido / Casa de taipa e mãos calejadas”; na mesma direção, Mel Duarte trata de uma feminilidade que se constrói na ultrapassagem dos limites: “Sou mulher feita / Carne e inquietação, sangue e vício, resquício de areia… / Por minhas veias navegam vontades, quereres intermináveis / Transbordo rio, viro cachoeira, deixo correnteza me levar” – ao passo que a escritora moçambicana Tina Mucavele vincula as origens a um sentido cósmico: “em todos nós, o universo plantou / uma semente subliminal / que não morre, não se afunda / em lágrimas, não vive de alimentos, / não se encanta com flores”, nisso encontrando uma força propulsora essencial. Lids Ramos, mãe e trabalhadora da zona sul de São Paulo, lança-se à busca de um sentido compartilhado para as existências das mulheres negras: “Ondas que vão e que vêm. / Pérolas Negras. / Damas esbanjando amores. / Telúrica transformando flores. / Mulheres guerreiras. / Amemos o sol, a lua e o nosso gueto”. Rose Dorea resgata as múltiplas etapas de uma trajetória de vida: “Como avó, ensinei a colher o trigo / Como mãe, dei o pão e o sentido / Como filha, fui e busquei abrigo / Como amante, corri os riscos / Como mulher, fiz tudo isso” – não deixando de denunciar o desprezo que a sociedade dispensa à velhice.

4. A tematização do erotismo e da afetividade é certamente um dos motivos mais instigantes da moderna poesia de autoria feminina; e o tratamento conferido por mulheres negras a esses motivos merece um especial relevo, por tangenciar questões prementes – como a fetichização do corpo e a solidão da mulher negra. Jornalista e escritora, uma das organizadoras do livro, Elizandra Souza trata de uma mulher que, na iminência do encontro amoroso, se reconhece autônoma, múltipla e capaz de converter aquele momento em uma experiência repleta de lirismo: “Eu sou lua, mulher de fases, / Um dia nova, outra minguante / Uma noite cheia, outra crescente / Sei que a nossa música exala poesia / Encontro de letra e melodia / Vagalumes dançando na noite”. Também organizadora de Pretextos de mulheres negras, a pesquisadora e educadora Carmen Faustino faz de um encontro uma experiência quase mítica, matizada por uma herança racial: “O banho é ritual / O corpo responde ao calor / A meia-lua, me visto quase nua / Pele negra macia, cheiro de flor // No ouvido, som da diáspora negra / Em ânsia, palpito, aperto o peito / Suspiro, e acalmo o desejo / Aguardo o melhor desfecho”. Igualmente atenta à dimensão histórica da afetividade negra, Chaia Dechen pensa a experiência amorosa como um momento de redenção e cura, capaz de ressignificar um doloroso passado coletivo: “Vem em mim, amor / Porque os resquícios do navio negreiro / Ainda exalam dor na intimidade de nossas relações afetivas… / Vem, amor… / Cure-me das chagas presentes no coletivo inconsciente / No presente / Na imundície do passado / Do medo e do ódio velado”. Flávia Rosa, artista e pesquisadora de dança e artes do corpo, transporta para o discurso lírico a procura por uma harmonia própria dos corpos negros: “Desperta as nossas cobras Kundalini / antes adormecidas / agora, dançam como fogos de artifício / num copo de cerveja, até as nuvens de espuma / nossa pele preta nos protege dos raios da lua / conservando o calor e umedecendo minha areia”. Jenyffer Nascimento, jornalista e militante, vai ao cerne dos questionamentos políticos em torno do significado social da afetividade negra: “O primeiro homem negro que amei / Não sabia que era negro / Mas a polícia sabia bem / Tirando os beijos trocados na porta da escola / Demonstração de afeto, coisa rara / Revolta era o sentimento mais comum / A maneira de dividir a cor / De dividir a cor”. Em direção próxima, a socióloga Luciana Dias evidencia o potencial revolucionário das vivências amorosas: “Preto que te quero bem / Amar é ato político / Escolher quem se ama / É mostrar ao mundo / Resistência que nos mantém”. Lu’z Ribeiro, poetisa e pedagoga, procura uma experiência amorosa que, racializada, ultrapasse a finitude: “ao invadirmos nossa cor / nos emaranhamos como nossos cabelos / toques despudorados e compassados / beiram o infinito cedem-nos a completude”. A historiadora Tiely Queen registra os anseios de uma subjetividade lírica lésbica e desejante: “Suas mãos suadas me transmitem fogo / Sua pele negra toda incandescente / Seu sexo que proclama o intenso gozo / Mordida macia, meu seio lateja”.

5. O registro da denúncia não poderia estar ausente de um livro composto por mulheres sobre as quais incidem múltiplas formas de opressão; “a conjugação do racismo com o sexismo produz sobre as mulheres negras uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida”, analisou Sueli Carneiro [2] – e se qualquer composição assinada por uma autora negra traz as marcas dessas violências, em certos momentos a voz da indignação se faz mais visível no texto poético. É o que percebemos nos versos de Débora Marçal, professora de dança e designer de moda: “Violência doméstica é levantar a voz / quando já se tem um pênis social para se esconder por trás / Violência doméstica é ameaçar que vai bater / quando o peso do seu braço é quase o peso do corpo do outro / Violência doméstica é o olhar feio / Que faz o corpo inteiro se calar para sempre”. Nayla Carvalho, jornalista e capoeirista, aborda uma consciência disposta ao confronto, que recusa tentativas de domesticação: “Antes de saber do pente que penteia meu cabelo / Vá perguntar ao seu povo o que ele fez do meu / Vai ouvir sobre miséria, genocídio e violência / Ouça bem e não se esqueça, pois meu povo não esqueceu”. A atriz, dançarina e poetisa Priscila Preta figura uma subjetividade empoderada, intransigente ao exigir de volta o que oferece: “Se sou o orifício, / E você o protagonista / Do seu filme egoísta / Pega o beco! // Se sua pele não sente a minha / O olhar é pro espelho, / E o encontro não nos encontrou / Pega o beco!”; demanda semelhante à de Tuna Pilar, que afirma poeticamente sua capacidade de superar a indiferença e a negligência masculinas: “Aos homens que amei / Lamento não terem reconhecido / O mais forte dos Pilares / Sobrevivi através dos anos / Abençoada pela força de Oxum”. Finalmente, Queen Nzinga Maxwell, historiadora e ativista costa-riquenha, acusa as múltiplas formas de dominação de uma sociedade que persiste “impuzinando misoginismo / social anti-mujerista / criando hombres incapaces / de amar a una mujer”.

6. O livro se encerra com um pungente texto-homenagem a Maria Tereza Aparecida Moreira de Jesus, artista de múltiplas faces – escritora, dançarina, cantora, atriz, ilustradora – falecida em 2010. Assinado por Renata Felinto, o texto mescla trechos de obras e recordações pessoais para resgatar a trajetória de uma mulher que soube produzir, a partir de si, diversas formas de resistência, sintetizadas na construção de uma identidade revolucionária, como indiciam os versos de Rosa preta: “Neste corpo cheio de poros sei muito bem do meu osso / Sou Rosa Negra, quase parente do cáctus / Existo em exuberância e persistência / Minhas raízes se ramificam frutoflorificantes / No baobá que pronde vou, fui e vim”. O que assim se evidencia são laços afetivos que preservam, na memória coletiva, a presença de uma companheira que, embora não fisicamente, permanece na luta – materializando-se em gestos e palavras recuperados por aquelas que aqui persistem.

7. Não é possível, nos limites deste brevíssimo ensaio-resenha, explicitar devidamente a importância da publicação de um livro como Pretextos de mulheres negras. Inteiramente composto pela sensibilidade, pelo trabalho e pelo afeto de mulheres negras, desde a organização até a capa e o projeto gráfico, trata-se de uma obra que reúne vozes que recusam o silêncio; vozes que, mesmo ignoradas pelo mercado editorial, resistem e reafirmam sua potência e pluralidade. A convergência de motivos e demandas patente nas páginas do livro demonstra o largo abismo que nos separa de uma sociedade na qual o racismo e o sexismo não sejam forças estruturantes; não obstante, é com essa sociedade que sonham as mulheres que somaram vozes no volume, e que cotidianamente persistem na luta pela construção de uma nova realidade. As mjibas brasileiras vêm fazendo uma revolução que, se não será televisionada, permanecerá registrada nas páginas e nas memórias de quem sabe que a periferia faz poesia – também no feminino.

Notas

[1] Pesciotta, Natália Heine. Pretextos de mulheres negras. Revista Trip, 23.04.2014. http://revistatrip.uol.com.br/tpm/pretextos-de-mulheres-negras
[2] Carneiro, Sueli. O matriarcado da miséria. In: Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

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