Plural Elizandra

Elizandra Souza. Águas da cabaça. São Paulo: edição da autora, 2012.

Aguas-da-Cabaça Nascida em 1983 na periferia sul de São Paulo, a poetisa e jornalista Elizandra Souza versifica sua relação com o mundo enquanto mulher negra periférica – evidenciando a coexistência, em um mesmo ser, da sutileza de uma mulher que ama, que deseja e sente saudades e a firmeza dessa mesma mulher para gritar sobre a violência em diferentes esferas, para expor a desigualdade social que tanto nos incomoda, para reafirmar sua identidade. O que Elizandra assim revela é a existência, em si, de diferentes eus, cada um adaptado e preparado para lidar com as diferentes situações que a vida impõe.
Como reflexo literário dessa multiplicidade, em sua obra Águas da cabaça temos um vasto campo temático, abordando desde o amor até a violência de gênero – que aliás foi o tema que a impulsionou para a produção deste livro, já que não conseguiu publicar em diferentes antologias seu poema Em legítima defesa (que traremos mais adiante), percebido como supostamente muito “agressivo” pelos receptores de sua mensagem, homens – logo no país em que se estima que, aproximadamente, 500 mulheres sofrem algum tipo de violência por hora. Algo que também encanta nesse trabalho é sua composição, toda feita por mulheres negras, da ilustração à revisão textual, o que lhe concede um valor representativo. São elas: Salamanda Gonçalves, Renata Felinto, Nina Vieira, Mel Adún, Priscila Preta e Carmen Faustino.
Uma mulher negra, sentada em um rio, utilizando uma cabaça para banhar-se: o que essa capa teria a nos dizer? Possivelmente, dentre tantas interpretações possíveis, dois elementos nos parecerão familiares: a água como um elemento de purificação, de limpeza, e o rio como a real representação da natureza, que flui levando consigo e desaguando em um lugar distante o que nele estiver. Talvez possamos afirmar que temos a figura de uma mulher se livrando de tudo que a faz mal, que a faz inferior, que a faz invisível – seja por um amor que se foi, seja pela luta diária de se mostrar triplamente boa no que faz por ser uma mulher negra; mas agora isso não importa, visto que o rio está levando tudo embora.
Elizandra Souza é capaz de, por meio de palavras, fazer com que recriemos nitidamente a imagem daquilo que descreve, nos instigando com a sensibilidade de seu olhar observador; é como se, por uma espécie de mágica, alçássemos voo para o seu mundo e nos tornássemos também observadores da cena que nos é apresentada. As cenas nem sempre nos transmitirão bons sentimentos, porque sua poesia é um retrato da vida – evidentemente, sob sua perspectiva de mundo –, e sabemos bem como ela pode ser dura para certas sensibilidades. Só se permita ser tocada por este poema, (In) visibilidade:

Menino olha na janela,
Cano grita na garganta
Copo cai e esfarela.
Bolinhas habilidosas
Giram no alto e alternam nas mãos
Chicletes na caixa, vidro embaça
Fogo cospe da boca da menina
Crianças pedem um real
Arrogantes sapatos de salto
Pisam no ar
E não enxergam o chão
Farol fecha,
Encerra a apresentação.

Como é cruel a maneira como naturalizamos a desigualdade social; como nos tornamos insensíveis diante de cenas como as descritas nesse poema e que presenciamos corriqueiramente em nossos dias corridos, tão corridos que nos impedem de olhar o outro e de nos chocarmos com a realidade inumana, a ponto de criarmos uma revolta interna e buscar algum tipo de mudança! Esse é o sentido de poemas com esse amargo cenário: denunciar as injustiças e causar um desconforto em quem o ler.
Quando se pensa na figura da mulher que foi construída socialmente ao longo dos séculos, conseguimos perceber nitidamente a imagem de um ser que só foi/é pensado para saciar o desejo do outro, desconsiderando suas vontades e anseios. Aí está a importância de uma poesia erótica escrita por uma mulher, como um modo de esbravejar aos quatro cantos que temos desejos sim, que criamos os mais diversos devaneios sexuais sim e que precisamos ter esses anseios saciados sim, porque a vontade sexual é algo que não se limita ao gênero. Dentre tantos poemas eróticos que há nesta obra, sinta a sutileza que nos incendeia em Mar doce:

Encontro de rio e mar
Mistura do teu suor na minha língua
Do meu perfume na sua boca
Meus seios adocicados, salivados
Na ponta dos teus dedos

Eu nua vestida de estrelas
Tu movimentado no meu sol
Teus beijos nas minhas costas
Saboreei todo o sal do teu corpo
E você o doce licor das minhas pétalas.

De Em legítima defesa, o motivador para que tivéssemos essa compilação tão plural e inspiradora, lhe ofereço um trecho:

Só estou avisando, vai mudar o placar…
Já estou vendo nos varais os testículos dos homens,
Que não sabem se comportar
Lembra da Cabelereira que mataram, outro dia,
E as pilhas de denúncias não atendidas?
Que a notícia virou novela e impunidade
É mulher morta nos quatro cantos da cidade… […]

É curioso pensar na recusa da publicação deste poema, visto que alguns homens pararam no segundo verso e afirmaram que Elizandra estava disseminando violência gratuita –palavras ditas pela autora em uma entrevista à revista Polifonia Periférica –, quando na verdade toda a dureza e sede de justiça que perpassam cada palavra é reflexo de um descontentamento em relação à postura conivente da sociedade diante das violências vividas por centenas de mulheres diariamente. Temos que lidar com essa negligência social, com uma mídia que romantiza diferentes tipos de violência, reafirmando nos noticiários e jornais que tudo ocorreu “por amor”; com uma população que não é capaz de enxergar as complexidades e nuances dessas violências, de perceber que se desvencilhar não é tão simples assim – no entanto, não podemos jamais perder a doçura das palavras e o riso delicado nos lábios, afinal, ninguém aguenta conviver com uma mulher “histérica” do lado. Querem nossas vidas e nosso silêncio.

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