Por uma releitura de Laura Santos

LAURALaura Santos ocupa um lugar bastante singular na história da literatura brasileira, enquanto voz solitária da poesia negra de autoria feminina na Curitiba dos anos 1950. Nascida em 1919, Laura Santos começou a escrever poesias ainda bastante jovem, alcançando um reconhecimento notável: já em 1938, seu nome surge no primeiro tomo da Antologia Paranaense editada por Rodrigo Junior e Alcibíades Plaisant, em que também se anuncia a preparação de seu primeiro volume de poesias, Sangue tropical. Essa obra, como as duas outras por ela assinadas – Poemas da noite e Desejo – seriam concluídas em 1953, mas permaneceriam inéditas; seis anos mais tarde, o livro Um século de poesia – poetisas do Paraná, editado pelo Centro Paranaense Feminino de Cultura, finalmente os publicava, anunciando ainda uma publicação em separata. A obra e o nome de Laura Santos seriam resgatados em 1990 por Helena Kolody, que publicou o livro Poemas: Laura Santos, reunindo seus três livros.

A voluntariedade de Laura Santos certamente está associada ao espaço que logrou conquistar no cenário literário de sua época. Negra de família humilde, cursou a Escola Normal, trabalhando como professora; com o propósito de alistar-se na Cruz Vermelha e atuar durante a Segunda Guerra Mundial, dedicou-se ao curso de enfermagem de guerra. Ainda muito jovem, venceu um concurso promovido pela Base Aérea, com um texto intitulado “História da evolução da aviação”. Sócia fundadora da Academia de Letras José de Alencar, participou do Centro de Letras do Paraná. Suas muitas publicações em diversos periódicos e revistas literárias paranaenses evidenciam o afinco com que encarou o desafio de ocupar uma posição como intelectual, posto que mulher e negra.

A recepção crítica da produção literária de Laura Santos tem enfatizado duas questões: o lugar que o corpo e o erotismo ocupam em sua obra e uma suposta indisposição para “levantar bandeiras” – em seu caso, no que tange às reivindicações feministas e antirracistas. No que diz respeito ao tratamento do corpo e do erotismo, Laura Santos seria autora de uma obra “instintiva, sensual e autêntica”, como afirmou Pompília Lopes dos Santos. Já no que toca à sua relação com causas políticas, as avaliações parecem enxergar ora uma postura resignada, ora um silêncio derivado de um temperamento forte o bastante para não se deixar abalar pela opressão – uma consciência sem complexos, como afirmou Helena Kolody, por exemplo. Exceção a esse respeito é Rosana Cássia Kamita, que procurou enxergar na autoafirmação de Laura Santos como poetisa uma expressão dos conflitos enfrentados pela subjetividade racializada. Penso, com efeito, que tratamos de uma autora cuja produção lírica demanda leituras que a reavaliem a partir de elementos determinados por sua condição, como negra e mulher.

O erotismo de fato surge na poesia de Laura Santos com força ímpar, como atestam os versos de Volúpia

Quando desperta o sol, com seus brutais desejos,
beija o meu corpo inteiro em seu delírio rubro.
Na limpidez do céu, todo desfeito em beijos
um poema sensual de róseo amor descubro.

ou os tercetos que encerram Beijo

Teus lábios devem ter um cheiro de floresta,
nas auroras boreais da mocidade em festa,
quando estuantes de amor sentimos a alma louca!

Igual à chama rubra e ardente do astro-Rei!…
E para eu ser feliz é preciso, bem sei,
a embriaguez do licor olímpio de tua boca!

Penso, não obstante, que a recepção do temário erótico na produção lírica de Laura Santos pode ser associada precisamente à sua condição de escritora negra, na medida em que desde o período setecentista o ideário racista insistiu na propensão sensualista da raça negra – inevitável decorrência de uma condição supostamente menos espiritualizada ou intelectualizada; por outro lado, trata-se de algo ainda mais acentuado no caso de uma mulher, visto que o pensamento patriarcal jamais deixou de enfatizar uma pretensa indissociabilidade entre corpo e mente no que diz respeito ao gênero feminino. Nessa medida, desde uma perspectiva racista e patriarcal, nada mais aceitável (porque previsível) que uma mulher negra compusesse uma poesia em que é evidente o investimento erótico, ao passo que o decoro ou o pudor seriam elementos desejáveis na produção de mulheres brancas.

Evidentemente, nada disso menoriza a obra de Laura Santos, cuja poesia apresenta inovadores modos de figuração do corpo e um notável aproveitamento de motivos eróticos, solicitando novas investigações; mas isso muito pode revelar acerca de juízos críticos que insistem em repetir lugares-comuns que qualificam sua poesia como “instintiva” ou “sensualista”, sem explorar seu uso particular de recursos literários, ou que acriticamente admitem a pacífica recepção, por parte da crítica, de elementos inovadores de sua produção lírica, sem questionar o quanto pode nisso haver de condescendência.

Já no que diz respeito a uma suposta resignação de Laura Santos, ou à sua indisposição para levantar “bandeiras” políticas – patente em leituras que a caracterizam como uma poetisa indiferente ou infensa às reivindicações feministas, por exemplo –, parece-me necessário questionar em que medida os movimentos que, em sua época, vocalizavam essas reivindicações seriam capazes de representar suas demandas particulares de mulher negra que, apesar de sua origem humilde, logrou encontrar espaço entre a intelectualidade curitibana. Em outras palavras: quando se fala de feminismo, de que feminismo se fala? Com que feminismo(s) poderia uma mulher negra, na posição particular de Laura Santos, dialogar?

Penso, com efeito, que ainda há muito a se investigar na poesia de Laura Santos – uma escritora que demanda leituras capazes de, ultrapassando as interpretações que se ancoram em lugares-comuns e perscrutando os silêncios e as entrelinhas, logrem desvelar indícios do estro de uma subjetividade racializada, apta a elaborar formas próprias de resistência. A partir dessas claves, que leituras não podem suscitar, por exemplo, o encarceramento figurado em um poema como Alma, ou a minuciosa descrição do corpo feminino em Morena, apenas para citar dois poemas de Sangue tropical; ou o pessimismo intimista, a solidão e a angústia presentes nos Poemas da noite? Em uma sociedade profundamente racista e patriarcal, muitas vezes é preciso resistir por caminhos menos visíveis.

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