A luta pela liberdade no fim é a semente (Parte I)

Angela Davis. A liberdade é uma luta constante. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2018.

a-liberdade-e-uma-luta-constante-9788575596128-553Em tempos de aprisionamento às estruturas do sistema capitalista, em que a liberdade parece estar cada vez mais distante, assim como a vontade de lutar, a mais recente obra de Angela Davis chega como um baluarte em solo brasileiro. A liberdade é uma luta constante proporciona à leitora a oportunidade de conhecer e participar desta luta contra as inúmeras formas de dominação dos seres humanos, e tem um sentido importante na atual conjuntura da sociedade brasileira, onde é perceptível um certo sentimento de insuficiência e descrença. A obra oferece reflexões importantes, traz relações que muitas vezes não enxergamos e desconhecemos, e que são indispensáveis para o nosso posicionamento político. A intelectual nos presenteia com textos extremamente inspiradores, revelando que há uma interseção entre as lutas, e isso deve ser observado para que consigamos combater, de forma coletiva, o individualismo causado pelo capitalismo.

Angela nos convida, de forma combativa e ousada, a pensar novas propostas para as nossas lutas, entendendo a interseccionalidade que existe entre elas. Esse é um conceito que ganha força com a evidente atuação da ativista, que fundamenta as análises e estudos sobre as interligações entre raça, classe, gênero e sexualidade. A autora pontua que esse é um conceito atravessado por uma potente trajetória de lutas constantes e globais. Há uma percepção crescente de que não é possível separar as questões de raça, de classe, das questões de gênero; de maneira análoga, Angela insiste também na importância da interseccionalidade dos movimentos, pois se estamos lutando pela libertação da população negra, se estamos lutando pela real democracia da libertação, precisamos pensar um pouco mais a situação da Palestina – e, para isso, ela fala sobre a tentativa de refletir acerca dessa questão através do movimento de abolicionismo prisional, a fim de que as pessoas empenhadas na causa, também pensem sobre a necessidade urgente de dar um fim à ocupação dos territórios palestinos.

A autora enfatiza a primordialidade de entendermos o papel do Estado nessas lógicas de violência. Ela propõe paremos de imaginar o terrorismo como é apresentado pelos meios de comunicação e que o encaremos como uma violência de Estado, pois isso é o que permite que o racismo estrutural, em todas as suas nuances, se transforme no sistema prisional. Angela Davis aponta que o espaço formal da prisão, muito mais que prático e direto, é extremamente representativo, sendo utilizado como um local onde se depositam pessoas que simbolizam problemas sociais, assim; diz:

O espaço da cadeia ou da prisão não é apenas material e objetivo, mas também ideológico e psíquico. Internalizamos essa noção de um lugar onde colocar as pessoas más.

A partir dessa ideia, ela mostra como a criminalização de indivíduos negros revela quais são os corpos que pesam e quais são os corpos que não pesam — o que deriva de uma lógica punitivista: se você cometer um crime, você precisa ser privado de liberdade, precisa ser punido, e de certa maneira, as tecnologias carcerárias serão construídas para seguir essa lógica segundo a qual alguns podem ter liberdade e outros, não. Ao contestar “o monopólio da violência cobrado dos oprimidos”, Angela faz referências às estratégias diárias por intermédio das quais criminalizamos mulheres pelo estupro, negros e negras pela luta antirracista, palestinos pelo apartheid israelense, homossexuais pelos crimes homofóbicos e Marielle Franco pelo próprio assassinato.

Vale ressaltar o que Davis afirma acerca do feminismo. Para a autora, não só o feminismo, mas quaisquer movimentos libertários transformam-se em ferramentas mais poderosas quando conseguem afetar a visão de pessoas que não necessariamente se associam a eles. Há, para a ativista,

uma dimensão filosófica feministas nas teorias e nas práticas abolicionistas. O pessoal é político. Há uma profunda força relacional que liga as lutas contra as instituições e as lutas para reinventar nossa vida pessoal e nos remodelarmos.

“O pessoal é politico” aparece aqui como uma provocação, pois falamos muito sobre isso, mas raramente paramos para analisar como as violências que nos acometem em larga escala também são difundidas em nosso cotidiano. Em qual momento observamos que reproduzimos uma lógica de opressão? Pensamos muito mais em como as pessoas oprimiram. Dessa maneira, ela propõe articulações de maneira bastante dialética, sempre colocando o lado positivo e negativo e trazendo a terceira possibilidade. Isso traz um ganho muito grande, se pensarmos que temos vivido cada vez mais momentos em que as opiniões, as perspectivas e as ideias contrárias são apagadas, o que faz com que nos afundemos numa lógica onde só podemos ser a favor ou contra, gostar ou não gostar; parece que perdemos o pensamento crítico e a disposição para observar, analisar e destrinchar. O livro resgata esse pensamento e traz uma noção de esperança muito grande a quem o lê. Ao final, Angela Davis pontua que, enquanto uma pessoa estiver sendo oprimida ninguém estará livre, ou seja: a gente precisa ter uma noção mais global e solidária em relação às lutas, mantendo vivo o “otimismo da vontade” que vive dentro nós como uma força que nos motiva a continuar plantando as sementes.

Leia a parte II deste ensaio aqui.

2 comentários em “A luta pela liberdade no fim é a semente (Parte I)

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