A obra literária de Sônia Fátima da Conceição está ainda longe de receber a atenção que merece. Autora de uma produção consistente – basta acompanhar suas colaborações para os Cadernos Negros, com poemas e contos publicados em mais de dez edições, desde os anos 1970 –, Sônia Fátima fez parte do coletivo Quilombhoje e teve obras publicadas nas importantes antologias Women Righting: Afro-Brazilian Women’s Short Fiction, organizada por Miriam Alves e Maria Helena Lima (Londres: Mango Publishing, 1995) e Finally us: contemporary black brazilian women writers, organizada também por Miriam Alves (Colorado Springs: Three Continents Press, 1995). Em 1991, publicou ainda a novela Marcas, sonhos e raízes (edição da autora).
A rara sensibilidade perceptível em seus escritos evidencia uma preocupação em compreender a complexidade das estruturas opressoras que configuram a sociedade em que vivemos – estruturas que, operando a partir da raça, do gênero e da classe, estabelecem relações de poder que resultam em processos de reificação e desumanização. Não obstante, algo que singulariza a obra de Sônia Fátima da Conceição é uma tenaz disposição para ir além dos registros que se reduzem à denúncia, limitando-se ao descritivismo – como se bastasse construir cenas ou relatar episódios que tautologicamente repitam aquilo que já podemos acompanhar, cotidianamente, pelos noticiários e pelas páginas policiais. Em outras palavras: a concepção politicamente investida do texto literário advogada por Sônia Fátima da Conceição se materializa em uma escrita que não se esquiva à tarefa de enfrentar a realidade desde uma perspectiva propositiva.
Gostaria de aprofundar essas considerações a partir do poema Branca História, publicado em Cadernos Negros 9:
Hoje num esforço sobre humano
lutamos pela integridade do Ser
que a branca história
covardemente esfacelou.Nossa luta deixou de ser
contra matas cerradas
vegetações turbulentas
touceiras de espinhos
flechas, açoites.
Ela se dá bravamente
no asfalto, a céus claros
horizontes abertos.No entanto hoje
não é menos intensa, imperiosa
explode ela na garganta do bóia-fria
nas veias da doméstica
e em todas as dignas bocas negras
que sobrevivem
à dizimação da abolição.
A noção de “branca história”, mencionada na primeira estrofe, de imediato alude ao processo de aniquilação da negritude imposta pelas narrativas brancocêntricas. As ruínas a que foi então reduzida a condição do povo negro, por intermédio do esfacelamento mencionado no verso final, impõem a necessidade de se resgatar a integridade perdida: o Ser que emerge como imprescindível objetivo da luta a que nos dedicamos. É ainda importante notar a marcação temporal – o “hoje” que abre a composição – e o emprego da segunda pessoa do plural – “lutamos” –, elementos que operam retoricamente para evidenciar como se trata de uma contenda atual e coletiva.
Toda a segunda estrofe se concentra precisamente em assinalar as particularidades dessa luta. Importa perceber o resgate de sua dimensão histórica, do segundo ao quinto verso; um sentido histórico que é sistematicamente obliterado (não por um acaso, mas consoante um propósito político) pela “branca história” mencionada no título da composição. Não obstante, se a luta atual não mais ocorre nessas condições, cabe reconhecer uma subjacente relação de continuidade: se hoje podemos lutar no asfalto, isso ocorre porque, em épocas anteriores, houve quem sustentasse o combate em meio às flechas e aos açoites, assegurando a nossa sobrevivência.
Por fim, a estância final identifica algumas das figuras que protagonizam essa luta em sua forma atual; uma luta que nada perdeu em intensidade ou em grandeza, e na qual permanecem engajados o boia fria, a doméstica e “todas as dignas bocas negras / que sobrevivem / à dizimação da abolição”. O verso final, a propósito, opera como uma necessária admoestação – que, para além de referir-se ao estado inconcluso do processo emancipatório, evidencia em que medida ele serviu como ponto de partida de um novo processo de aniquilação do povo negro. A luta permanece, portanto, como um imprescindível combate que ainda diz respeito à nossa sobrevivência.
Penso que Branca História ilustra adequadamente o sentido de produção literária defendido por Sônia Fátima da Conceição; uma literatura que, assumindo o propósito de avançar para além dos registros superficiais, pretende-se um efetivo instrumento de combate e de transformação do real.
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