Djamila Ribeiro. Quem tem medo do Feminismo Negro?. São Paulo/SP: Companhia das Letras, 2018.
Em seu primeiro livro lançado pela editora Companhia das Letras, a filósofa e feminista Djamila Ribeiro reuniu artigos publicados no blog da Carta Capital entre os anos de 2014 e 2017, trazendo profundas reflexões sobre questões raciais associadas ao feminismo. Djamila aborda também diversos casos de racismo, desde os ocorridos no cotidiano até os que ganharam destaque na mídia. São 30 textos que abordam os casos envolvendo Serena Williams, Maju Coutinho ou Marcelo Góis, entre outros, e desconstroem mitos como o “racismo reverso” e a “democracia racial brasileira”, pautados em referências teóricas de mulheres negras como Chimamanda Ngozi Adichie, Simone de Beauvoir e Angela Davis.
Logo na introdução, temos um ensaio autobiográfico da autora, em que ela nos mostra a sua trajetória como mulher negra que experienciou o racismo na pele, o silenciamento que viveu desde a infância e as consequências que isso gerou. Djamila, nesse momento introdutório, vai tecendo vozes que foram importantes para que ela hoje seja capaz de lutar por seus ideais. Vozes que ecoaram de sua avó à sua filha, assim como no poema de Conceição Evaristo, Vozes Mulheres – “O ontem – o hoje – o agora / Na voz da minha filha / se fará ouvir a ressonância / O eco da liberdade.” É daí que vem o lugar de fala, é dessa experiência que vem a escrevivência. Seu discurso permite questionar e desconstruir o conceito de meritocracia, pois ninguém imagina o quão árdua foi a sua trajetória.
Em certa passagem, Djamila nos conta como recuperou a ligação com as suas raízes – depois que começou a trabalhar na Casa de Cultura da Mulher Negra, onde passou a ter orgulho de quem é. Conta o quanto sua família foi importante para esse processo de autoconhecimento, principalmente a sua avó, que lhe transmitiu ensinamentos valiosíssimos que ela carrega até hoje.
Até hoje guardo a memória olfativa da casa dela, um misto de boldo, incenso de arruda, o feijão que só ela sabia fazer e o doce de abóbora com coco. Quando eu sentia dor de barriga, ela pegava uma erva do quintal e fazia um chá, hábito que tenho até hoje – com a diferença de que compro minhas ervas na feira. Ela me benzia e depois entregava a bebida. Se demorasse a passar, ficava apertando minha barriga enquanto murmurava algo inaudível. Devo ter mentido algumas vezes quanto à dor de barriga só para dormir enquanto ela me massageava.
Ler esse trecho me fez lembrar da minha avó e seus remédios caseiros. Xaropes, chás, folhas, é o que não falta na casa dela. Assim como Djamila, consigo me lembrar facilmente do cheirinho de chá de capim limão ou cidreira que a minha avó fazia, dos domingos à noite em que ela trançava os cabelos assistindo televisão, das sopas de fubá com alho que ela fazia quando eu ficava gripada. Ler isso me trouxe uma sensação nostálgica, me levou à infância e a pensar em como essas lições são realmente valiosas.
Djamila Ribeiro defende a ideia de que deve haver um recorte para mulheres negras dentro do feminismo. Importa reconhecer que nós, mulheres negras, somos mais suscetíveis ao machismo, pois somos a antítese da brancura e da masculinidade, algo que Grada Kilomba chamará de “outro do outro”.
…ser oprimido não pode ser utilizado como desculpa para legitimar a opressão.
Em Quem tem medo do Feminismo Negro?, a autora dá visibilidade social às mulheres negras, nome às opressões e responsabiliza tanto quem oprime quanto quem se cala. Desmistifica a ideia negativa associada ao termo “feminismo negro”, que causa tanta aversão em algumas pessoas (privilegiadas). Evoca Conceição Evaristo, para quem os feminismos negros são “esse estilhaçar, romper, destabilizar, falar pelos orifícios da máscara”.
Por meio do meu trabalho na biblioteca e dos textos que escrevia para a revista da ONG, tive oportunidades únicas de identificar a máscara e me fortalecer para poder falar pelos orifícios dela. Não se pode lutar contra aquilo o que não se pode dar nome. […]conhecer a minha história, a história dos meus antepassados, me possibilitou romper com a história única e identificar tudo aquilo de negativo que havia sido dito sobre pessoas como eu.
O livro funciona muito bem como um bê a bá acerca do feminismo negro, já que tem partes muito didáticas, mas também é útil para quem já está na militância há algum tempo. Através de uma simultaneidade de vozes – a sua própria e as das várias autoras citadas no livro –, Djamila Ribeiro aponta a necessidade de que pessoas privilegiadas percebam quão essencial e urgente é a luta das mulheres negras. Apesar de sermos tratadas como estrangeiras em nosso próprio país, isso nos possibilita estar num espaço de fronteira, num “não lugar” que pode ser doloroso, mas também um lugar de potência, como ressalta Patrícia Hill Collins. Quem tem medo do Feminismo Negro? nos ajuda a encontrar essa potência em nós mesmas.
Sobre a autora convidada
Cinthia Martiniano é graduanda em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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