“Precisa ser desculpado, é um homem do seu tempo”

foto lp

A foto que estampa este artigo foi tirada em 1982, e é do jornalista Luiz Morier. Nela, um sargento da PM, à maneira dos antigos capitães do mato, segura sete homens negros amarrados por uma corda. A fotografia foi destaque da primeira página do JB e posteriormente rendeu ao jornalista o Prêmio Esso.

Esses dias eu participava de um clube do livro e a estrela da vez era uma obra que eu havia lido no ensino médio, e que, naquela época, eu adorei. Sempre gostei de histórias narradas em primeira pessoa: primeiro, porque me sinto mais próxima à vida do autor ou do narrador ficcional; e também porque consigo imaginar melhor as cenas narradas, ao mesmo tempo em que me distancio mais da realidade. São coisas muito comuns a quem gosta mesmo de uma boa história. O prólogo era gostoso de ler, e Já de início senti o que algumas obras têm a capacidade de despertar em nós: vontade de devorar o livro em uma leitura só. Mas essa sensação durou muito pouco. Nas primeiras páginas, o narrador relata sua estadia em um hospital, depois do acidente que o deixa tetraplégico; nesta cena narrada, ele apelida um enfermeiro negro de “Ding Dong” porque o som da palavra o lembrava de King Kong. Mesmo assim, resolvi ler o livro até o final, porque talvez o fim dessa história trouxesse algum tipo de lição. Não houve lição alguma, a não ser o fato de que o pai do narrador é sequestrado por militares da época da ditadura, mostrando como a democracia alcançada anos depois era valiosa. Descobri, depois, que atualmente a obra já é conhecida por apresentar pensamentos de cunho racista, misógino e homofóbico.

Vejam bem, eu não estou falando apenas do uso de expressões de cunho racista (quem também são utilizadas pelo autor), mas falo de uma narrativa construída a partir de pensamentos extremamente preconceituosos. Eu me pergunto: existe algum contexto em que comparar um negro a um King Kong seja aceitável? Como é possível que naquela época da escola eu tenha feito essa leitura e não tenha atentado para isso? Sempre fui uma leitora voraz. Fui também uma excelente aluna na escola; mas, infelizmente, no início dos anos 2000, meninas que estudavam nas escolas públicas em comunidades cariocas tinham muito pouco acesso a temas relacionados ao debate sobre preconceitos de gênero, raça e classe. Naquela época, me lembro, inclusive, que eu ainda tinha uma visão muito romantizada da literatura. Gostar de ler e ter acesso a livros em um meio onde o conhecimento era pouco valorizado representava um privilégio para uma menina negra periférica.

Mas voltemos ao início deste texto, quando eu disse que participo de um clube do livro. Depois de terminar a leitura do livro, resolvi comentar com meus colegas de leitura a minha revolta diante do que eu li. Rapidamente obtive a resposta de uma das participantes do grupo: segundo ela, eu deveria considerar que aquele autor era UM HOMEM DO SEU TEMPO. Vamos refletir: eu, Camila, mulher negra, que pertence a uma família de pessoas negras, em um dos países que mais matam pretos, mulheres e gays no mundo, eu deveria apenas considerar que a narrativa preconceituosa escrita nos anos 80 é de um homem de outros tempos.

Obviamente, precisei explicar àquela moça, muito ingênua, que nos anos 80 associar um negro a um macaco já era racismo, mesmo que isso não fosse criminalizado. Aliás, na época da escravidão já se sabia o que era racismo. Ainda me foi dito que o autor da tal obra já havia se retratado, e até escrito outra obra, com notas, “esclarecendo” a divulgação de seus pensamentos preconceituosos (pensamentos que, se divulgados em livros hoje, poderiam até ser até considerados crime). Depois de um debate caloroso, ainda me foi dito que aquela discussão não era nada pessoal. Primeiramente, gostaria de ressaltar: se você, que está lendo este texto, é branco, nunca se esqueça de que, toda vez que você for falar com um negro sobre racismo, É PESSOAL. Pare para pensar apenas no seguinte: você está falando com uma pessoa que é descendente de várias gerações de escravizados. Para qualquer negro, uma conversa sobre racismo é pessoal, ainda que ele mesmo não entenda isso. Sobre jogar confetes para uma narrativa ou escritor que quer se intitular “ex-racista”, eu cito o que o intelectual negro Luiz Silva Cuti1 diz a respeito da hipocrisia em nosso país: “A palavra ‘Brasil’ esconde os crimes e os criminosos”. Se você foi racista em algum momento da sua vida, se retratar não é mais que a sua obrigação. Pense que, em vez de estar por aí querendo dar justificativas para o que é injustificável, seria mais proveitoso fazer de fato algo para mudar a situação do povo negro nesse país, e posso dar uma sugestão: pensar em como evitar a eleição de um próximo “Bolsonaro”.

Alerto também para este debate dentro da própria literatura, pois tanto ela quanto a arte têm compromisso com o social. Literatura e arte traduzem a vida, tratam daquilo que é inerente ao ser humano e aos nossos processos de subjetividade, e obras pautadas em cima de pensamentos preconceituosos e criminosos devem ser revistas. O prefeito Marcelo Crivella parece se confundir nesse quesito, pois recentemente teve a coragem de passar vergonha pública ao tentar censurar uma revista em quadrinhos com a imagem de um beijo gay. Isso sim é inversão de valores; basta pararmos para pensar que livros que expressam o amor livre para nossos jovens são censurados, mas narrativas racistas circulam livremente com o selo “era um homem do seu tempo”. Não estou aqui defendendo censura de livros, pois acharia bom que na escola fosse ensinado, por exemplo, que na época da ditadura militar, nossa classe média branca de esquerda que lutava legitimamente contra o autoritarismo do governo tinha (ainda têm) em seu meio pessoas com pensamentos racistas – inclusive, é a mesma classe média que bateu panela para o golpe contra Dilma Rousseff, e segue sendo a mesma classe média que hoje se vê amedrontada com a eleição de Bolsonaro e a possibilidade da volta a uma espécie de “ditadura modernizada”. Essa classe média devia lembrar que povo negro sofre nesse país desde antes do golpe de 64, e continua sofrendo até hoje.

Mas voltemos à minha colega do clube do livro, pois é no mínimo interessante que as mesmas pessoas que vêm com essa desculpa de “um homem do seu tempo” nunca dizem que nazistas são homens do seu tempo. E não, não estou comparando o escritor dos anos 80 aos soldados dos campos de concentração, mas me pergunto, e os escritores da época do nazismo que eram a favor do extermínio do povo judeu? Eram homens do seu tempo também? A impressão que eu tenho é que, quando se trata da violência contra a população negra, haverá sempre uma desculpa e justificativa, e é por isso que ainda ouvimos absurdos como: negros vieram da África para o Brasil por falta de mão de obra; miscigenação não é fruto do estupro de mulheres negras escravizadas, mas a prova de que vivemos em um país racialmente democrático; mulheres negras e mulheres brancas são tratadas da mesma forma; bala perdida no Rio de Janeiro não escolhe cor, etc.

Para finalizar este artigo, já que falamos em “homens do seu tempo”, podemos lembrar das belas palavras de Luiz Gama, escritor negro, nascido em Salvador em 1830:

Em nós, até a cor é um defeito. Um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e vão a ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam; que esta cor convencional da escravidão, como supõem os especuladores, à semelhança da terra, ao través da superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.2

 


1 CUTI, Luiz Silva. Literatura Negro-Brasileira. 2a ed. São Paulo: Selo Negro, 2010. p. 18.

2 Citado em AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999. p. 180.

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