Miríades de Maréia

Miriam Alves. Maréia. Malê, 2019.

capa.inddAntecipo: recai em equívoco quem pensa que o título deste texto foi composto à maneira de um mero trocadilho. Ao nele mencionar “miríades”, tenciono, de fato, aludir a um aspecto fundamental desta mais recente obra de Miriam Alves: Maréia é uma obra que, se basilarmente construída a partir de um duplo eixo narrativo, abre-se em uma multiplicidade de referências, evocações e questionamentos que inquietam, enlevam e assombram; um daqueles livros que não apenas propiciam o deleite estético – condição indispensável à literatura de qualidade –, mas suscitam questionamentos que ressoam profundamente na subjetividade.

Ao reconstituir as trajetórias de duas famílias, uma branca (os Menezes de Albuquerque) e uma negra (os Nunes dos Santos), que acabam por convergir – por motivos menos contingentes do que a princípio pode parecer –, Miriam Alves reconstitui a violenta dinâmica própria da experiência colonial e suas inevitáveis consequências: para uns, o acúmulo de poder e fortuna à custa do sangue e do sofrimento alheio, o que não se dá sem consequências; para outros, a determinação que se traduz na mais obstinada resistência, gestando vidas destinadas à insubmissão. Denunciando a obtusidade dos donos do poder, a escritora agudamente desvela a pobreza dos que julgam possuir tudo (ou quase tudo), mas cuja ganância gera a própria maldição: a cobiça que em seu bojo produz forças entrópicas, reduzindo a ruínas a riqueza. Resgatando a resiliência dos oprimidos, Miriam Alves expõe as práticas e os saberes que acabam por assegurar a sobrevivência, transmitidos geração após geração. Como, a certa altura, afirma a personagem cujo nome dá título à obra: “Tem coisa que a gente bate de frente até conseguir, tem outras que esquivamos, damos um voleio, para alcançar o objetivo”.

É inevitável não tratar das particularidades da escrita de Miriam Alves – que, em Maréia, propiciam à sensibilidade leitora incontáveis momentos de singular beleza. Escritora de rara cepa, Miriam Alves logra unir um vasto repertório vocabular (que, no caso desse romance, mescla-se a termos em iorubá convenientemente arrolados em um glossário) a um estro criador de imagens de extraordinária potência lírica, do que resulta um texto forjado com precisão e rigor. Ora acelerando, ora retendo o andamento da prosa, Miriam Alves conduz habilmente o texto para alcançar almejados efeitos estéticos; não poucas são as passagens que impressionam pela potência plástica – como, por um lado, os patéticos trechos que descrevem as crises mentais de Guilhermina, ou o deplorável fim do patriarca dos Menezes de Albuquerque; e, por outro lado, o extraordinário desdobramento de Dorotéia e sua viagem pelos espaços-tempo, guiada por Noite-Estrelada, ou a pujante apresentação orquestral no desfecho do volume (e os inusitados acontecimentos que ali têm lugar, concretizando anunciados destinos).

Romance de densa urdidura, segundo volume de uma pentalogia cujo ponto de partida são os elementos da natureza, Maréia apenas reafirma a importância de Miriam Alves no cenário da literatura brasileira contemporânea – malgrado as excludentes dinâmicas, patriarcais e racistas, que permanecem atuantes sobre as letras nacionais.

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