As plurais mulheres do Cariri

Jarid Arraes. Redemoinho em dia quente. Alfaguara, 2019.

51URvvVUtgLRedemoinho em dia quente é a obra mais recente da cordelista, escritora e poeta Jarid Arraes, autora dos livros Um buraco com o meu nome, As lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis – todos já resenhados aqui no blog. Lançada pelo selo Alfaguara, da editora Companhia das Letras, a obra nos apresenta um Cariri que vai além de calor, secura e cactos. Jarid nos leva a um território onde cachorros de rua se espreguiçam na calçada, há lojinhas de bibelôs baratinhos, senhorinhas tranquilas e devotas a “Padim” Padre Cícero e muito mais.

Os contos falam de mulheres jovens e velhas nas mais diversas situações, em contextos públicos e privados, com temas que perpassam por preconceitos variados – transfobia, lesbofobia, sexismo –, assédio sexual, mas também temas como devoção e solidão. Há ainda muitos elementos característicos do Nordeste, como a cadeira de macarrão, as bandas Mastruz com Leite e Limão com Mel; mas, ainda que não compreendamos as referências de primeira, a leitura não é prejudicada e é possível ter muita empatia pelas personagens.

A autora brinca com seus textos, narrando a partir de diversos pontos de vista e em formatos de epístola e até entrada de dicionário, como é caso do conto “Boca do Povo”:

“quenga
substantivo feminino

1. mulher que tem as unhas muito compridas, que usa batom muito chamativo, que usa cor vermelha, que anda batendo o salto como se fosse cavalo, que não vai nas reuniões de pais e mestres e tem perfume muito doce ou muito forte ou usa muito perfume mesmo.
2. mulher que, segundo minha mãe, pode ser qualquer uma.
3. o que minha mãe, de acordo com a boca do povo, parece ser.”

Na narrativa “Sacola”, somos apresentadas a uma senhorinha católica e solitária que encontra uma sacola com comprimidos suspeitos e decide levar para casa; a partir daí, ela começa a surtar, achando que seria pega por bandidos:

Já imaginava a manchete no Barra Pesada, embalando o pânico familiar da hora do almoço. Com certeza o bandido voltaria com uma gangue, todos danados porque uma velha de igreja havia roubado seu saco de drogas.

Ao usar os compridos, ela tem uma experiência quase religiosa e acredita que esse é um caminho para encontrar com seu amado Padim Padre Cícero.

Da religiosidade para o sexismo: no texto “Moto de Mulher”, conhecemos uma jovem que enfrenta grandes obstáculos após comprar uma moto para trabalhar como mototáxi. Além da falta de experiência para determinar rotas e valores para seu serviço, o que logo no início da narrativa surge como uma questão frustrante, no decorrer da história nos deparamos com diversos episódios em que a protagonista é questionada, em tom de deboche, sobre ser uma mototáxi mulher. Notamos que esse conto é um reflexo bem apresentado de mulheres que trabalham ou desejam trabalhar em lugares predominantemente masculinos.

Em “Telhado quebrado com gente morando dentro”, conhecemos duas jovens irmãs que são muito amigas, cúmplices, parceiras de crime. A protagonista, a irmã mais nova, nos apresenta a Juliana, a mais velha, que é a mãe de todas, a mais responsável, a mais alegre. Juliana era apaixonada por Tulio, que depois de um breve romance perde o interesse e assedia a irmã mais nova quando ela tenta reaproximá-los. Nesse ponto da narrativa, a relação das irmãs começa a desandar e precisam enfrentar situações bem difíceis.

De todas as meninas que conheci, desde que me lembro, Juliana sempre foi a mais forte. Fazia o tipo mãe de todas. Era quem separava brigas, a que dizia pros meninos irem tomar banho quando estavam fedendo demais, a que parava a brincadeira quando a coisa saía do controle.

Numa entrevista ao canal Bondelê, Jarid fala do processo de criação dos contos que compõem o livro. Foram escritos, “esquecidos”, modificados por ela. Cada conto possui um valor único, histórias diversificadas e protagonistas mulheres que simbolizam muito das lembranças da própria autora durante a infância e adolescência no Ceará.

Para mim, foi uma leitura muito interessante e prazerosa. Apesar de alguns textos serem bem curtinhos, há uma complexidade na construção das personagens que resulta em contos com mundos inteiros para explorar e se encantar. E é também uma leitura bastante indicada para quem quer conhecer um pouquinho da cultura nordestina e estar em contato com personagens que nem sempre são retratados em nossa literatura.

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