
Em Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra, Nilma Lino Gomes leva em consideração o modo como o cabelo e a cor da pele representam importantes fatores constituintes da subjetividade de um sujeito, fazendo uma relação disso com a própria formação da sociedade brasileira e os conflitos de uma cultura nacional fundamentada no mito da democracia racial que obscuramente impõe ao negro brasileiro, ainda nos dias de hoje, o ideal do branqueamento.
O assunto toca em feridas que ainda são deslegitimadas como possibilidades de tema em pesquisas acadêmicas, e que mostram como para a academia é um desafio sair de uma bolha intelectual eurocentrista e reconhecer novas perspectivas epistemológicas trazidas, principalmente, por pesquisadoras negras. Relembrando o momento em que apresentou seu tema de pesquisa, Nilma relata a surpresa de um dos professores integrantes da banca “[…] ao ler o material, fiquei impressionado como poderia caber tanta coisa em um simples fio de cabelo.” A autora do livro, logo de início, também deixa claro que não esconde do leitor seu lugar de fala; e que muitas vezes, durante o desenvolvimento da pesquisa, trará um discurso atravessado pela sensibilidade de uma pesquisadora que se identifica e se valoriza como uma mulher negra.
O livro é dividido em introdução e mais três partes, construindo um bom panorama da complexidade relacionada a entender o “ser negro” em um contexto social cotidianamente discriminatório e racista. Dentro deste recorte, a pesquisadora se propõe a mostrar a importância dos salões étnicos em Belo Horizonte na virada do século XX para o XXI, mostrando como esses espaços, mesmo que não vinculados a movimentos da militância, atuam ativamente como um meio estratégico de resistência da cultura negro-brasileira, buscando a valorização não apenas da beleza negra, mas servindo como elo entre o negro e a reconstituição de sua própria imagem, sem que esta esteja deformada pelo ideal do branqueamento. Por ser um tema complexo e abordado a partir de uma tese de doutorado, o livro acaba trazendo uma linguagem acadêmica que talvez não apresente ao leitor esses temas de modo simples; mas é preciso reconhecer que o trabalho de Nilma expõe com seriedade científica e intelectual temas que afetam diretamente o modo de ser e estar no mundo das pessoas negras.
A introdução do livro é seguida pela descrição minuciosa da pesquisa etnográfica feita nos salões em que a autora realizou o seu trabalho de campo. Embora relate uma observação feita para um trabalho científico, o modo como a pesquisadora descreve os espaços observados e a história das pessoas entrevistadas logo desperta o interesse de quem se propõe a esta leitura. Nesta primeira parte, será quase possível que o leitor esqueça que se trata de uma pesquisa de campo: a autora apresenta o mundo dos salões étnicos através de um envolvimento sensível nas histórias e nos relatos narrados. A sensação é quase a de se ler um diário, que traz reflexões e experiências que tocam profundamente quem sabe o que é viver a experiência da negritude em um país marcado pelo colonialismo. As histórias de como os profissionais desses salões se tornam figuras ambíguas, mas extremamente envolvidas no resgate da autoestima de pessoas negras, é comovente e serve de impulso ao ritmo da leitura. Nilma Lino Gomes, através da publicação de sua pesquisa, mostra como a raiz crespa do cabelo de pessoas negras traz alegoricamente referências de uma luta antiracista que está longe de acabar, traçando, através da escrita, importantes reflexões que só poderiam ser postas dessa maneira por alguém que escreve do lugar em que ela se reconhece: o de uma mulher negra.
Na próxima semana, publicaremos a parte final da resenha sobre o livro de Nilma Lino Gomes Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra.
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