Cidinha da Silva. Oh, margem! Reinventa os rios!. Editora Oficina Raquel, 2020.

Cidinha, eu mergulhei nesse rio como se o fim do mundo fosse hoje.
A literatura de Cidinha da Silva é um caminho cheio de surpresas; por isso, sua escrita ultrapassa as fronteiras de qualquer imaginação limitadora. Seguindo essa característica, a segunda edição do livro Oh, margem! Reinventa os rios! contém crônicas e contos que tratam de temas como racismo, transfobia, machismo e detalhes do cotidiano observados com uma potência que modifica nossos olhares para o mundo. A resenha de hoje eu dedico a essa obra, que foi publicada primeiramente em 2011 e chega à segunda edição, publicada pela Oficina Raquel, em 2020. Dividido em quatro partes que compõem um rio – nascente, afluente, leito e foz –, o livro traz cinco novos textos da escritora: “Thriller”, “Querubim Pretim”, “O dia que o livro foi traje de gala”, “Musashi e Spider” e “O lugar de fala de quem se pergunta: em que inimaginável mundo novo vivemos?”.
“Bater laje era uma escola, na qual se aprendia de tudo. A laje bem batida, depois do alicerce confiável, era condição essencial para os andares futuros que subiriam aos céus.”
Através de seus contos e crônicas, Cidinha propicia o resgate de nossas memórias afetivas, pouco revisitadas e embaçadas pela ansiedade do futuro, característica comum dos tempos modernos. Com o conto “Construção”, por exemplo, acessei memórias, tão antigas e tão ricas, de um passado no qual a construção do meu lar parecia não ter fim, e a solidão era quase extinta graças à colaboração e ao trabalho em equipe dos vizinhos e amigos que, entusiasmados, se comprometeram a participar e comemorar mais essa vitória: a laje batida. Quem viveu e auxiliou na construção do próprio lar, em passinhos de formiga, anos após anos, entende a ansiedade pelo resultado final. Pouco a pouco erguido, o lar simboliza a raiz, o amparo, e sua importância vem da quebra da assustadora possibilidade de se viver nas ruas. Essa é uma das tantas crônicas de Cidinha da Silva que nos faz concluir que, ao mesmo tempo que temos vivências tão diferentes, há semelhança em diversos eventos no curso desse rio/vida.
“Vestia o uniforme da escola municipal, é verdade, mas e aquele menino alvejado pela polícia da favela do Rio que antes de morrer perguntou à mãe: por que o policial atirou em mim, mãe? Ele não viu que tava com o uniforme da escola?”
Essas dessemelhanças, ao mesmo tempo semelhantes, das narrativas também se manifestam com as histórias das variadas opressões cotidianas e estruturais a que somos expostos. O terror presente já na primeira narrativa constrói, ao longo do texto, diversas denúncias que, ainda que sejam terríveis, não são vistas assim por uma sociedade racista distanciada de um senso de absurdo. Intitulado “Thriller”, o primeiro conto abre o livro com uma história de violência sobre o corpo negro – mais precisamente, sobre o corpo das nossas crianças negras. O conto deixa de ser uma história fictícia e passa a ser uma história real se identificarmos nele aspectos do nosso cotidiano e da rotina dos jornais, e assim Cidinha da Silva o constrói. A escritora, com o talento de produzir uma narrativa cheia de surpresas mesmo a partir de histórias que são corriqueiras, aborda não só o racismo evidente no cotidiano, mas também o racismo das estruturas e instituições sociais.
O livro nos envolve como um rio, e sabemos que esse monumento da natureza se movimenta constantemente e variando o ritmo: corre ora calmo, ora colérico. A fluidez desse rio pode representar a inconstância de nossos sentimentos quando entregues a essa leitura. Cidinha da Silva, através de sua escrita, provoca em nós diversos sentimentos que podem mudar de um texto para o outro, ou até mesmo de uma linha para outra. A escritora multifacetada nos movimenta através de seus textos.
Às leitoras, eu oriento: deixem que esse rio as leve. Debrucem-se e permitam-se sentir o movimento dessas águas pelas quais Cidinha nos guia, acompanhada pelas mãos de Exú – muito presente em sua obra –, aquele que movimenta e comunica. Em tempos de pandemia, movimentar as águas que existem em nós é vital para a manutenção de nossa existência; é sobre se deixar levar por ondas calmas quando estivermos agitadas e abraçar as águas agitadas quando for necessário acordar.
Usando palavras da crônica “O dia que o livro foi traje de gala”, exibo aqui o livro que me formou, emocionou, que me fez mais humana e que quero compartilhar com todos os seres, sem distinção. Cidinha, eu mergulhei nesse rio como se o fim do mundo fosse hoje. Obrigada por sua literatura!
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