
“Celinha”, nome artístico de Célia Aparecida Pereira, é uma das duas autoras presentes no histórico primeiro número dos Cadernos Negros, publicado em 1978 – ao lado dela e de Angela Lopes Galvão, o volume trazia composições de Cuti, Eduardo de Oliveira, Henrique Cunha Jr., Hugo Ferreira, Jamu Minka e Oswaldo de Camargo. Além dos cinco poemas publicados nessa obra fundadora, Celinha publicaria mais sete textos literários em outros volumes da série: um conto (publicado em Cadernos Negros 4) e seis poemas (publicados em Cadernos Negros 7). Suas produções também se fazem presentes nas antologias Enfim nós / Finally Us – Contemporary Brazilian Women Writers, editada por Miriam Alves e traduzida por Carolyn Durham, publicada em 1995 nos Estados Unidos; e Cadernos Negros: melhores poemas, publicado em 1998 pelo Quilombhoje. A antologia Enfim nós / Finally Us traz também alguns poucos, mas importantes, dados biográficos: Celinha nasceu em 9 de outubro de 1956, em São Carlos (São Paulo), e participou de um tributo a poetas negros no Teatro Municipal daquele município, em 1986. A biografia mínima estampada em Cadernos Negros: três décadas, organizado por Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa e publicado em 2007, indica que Celinha então permanecia naquela cidade.
Tanto a escassez de dados biográficos quanto o reduzido corpus publicado por Celinha permitem apenas um vislumbre da trajetória literária de uma autora notável em diversos aspectos. De sua obra poética, a peça mais frequente em antologias é o poderoso “Negritude”, do qual transcrevo apenas a primeira estrofe:
De mim
parte um canto guerreiro
um voo rasante, talvez rumo norte
caminho trilhado da cana-de-açúcar
ao trigo crescido, pingado de sangue
do corte, do açoite. Suor escorrido
da briga do dia
que os ventos do sul e o tempo distante
não podem ocultar.
[…]
Para além das qualidades formais – a construção rítmica rigorosa, a excelência no manejo das rimas internas e dos efeitos sonoros e o cuidado na seleção lexical –, há na poesia de Celinha um certo registro que tangencia o discurso épico, sobretudo no que tange ao modo como a consciência histórica se faz presente no texto. Veja-se como esses elementos reaparecem neste trecho de “Resistência”:
[…]
Havemos de disputar com o sol o direito
de despontar primeiro no horizonte
e denunciar todas as manhãs.
Havemos de estancar o sangue das manchetas das Américas.
Havemos de irrigar de mãos dadas
os solos de África; e
alheios às vontades de
Ásia, Europa e Oceania,
Havemos de irromper banhadas de reconhecimento
nos mares do Pacífico
(mesmo que as águas do Níger já tenham
lavado nossos pés).
[…]
Vale destacar, ainda, a qualidade da prosa de Celinha, perceptível no conto “Os donos das terras e das águas do mar”, publicado em Cadernos Negros 4. Vazado num registro que remete às narrativas lendárias, o conto traz como protagonista o menino Tibério – um negrinho órfão, adotado pela noite e pelo sol. À noite, ele vai até a casa da Preta Babaça, que conta – a ele e a outras crianças negras – histórias sobre o povo negro que lhes propiciam um acesso à ancestralidade, oferecendo-lhes um fundamento para a própria existência. No ensaio “Reflexão sobre a literatura infanto-juvenil”, publicado no volume Reflexões sobre a literatura afro-brasileira (Quilombhoje, 1985), Esmeralda Ribeiro insere esse texto no processo de construção de uma literatura infanto-juvenil direcionada a crianças negras.
Conquanto lamentavelmente escassa – talvez devido às dificuldades de publicação que historicamente atingem escritoras e escritores negros –, a obra de Celinha se destaca tanto por suas particularidades estéticas quanto por indiciar a concepção de um valoroso projeto literário, que talvez não tenha encontrado as condições necessárias para vir à luz em um país no qual o epistemicídio constitui um dos mais nefastos instrumentos racistas. A nós cabe resgatar a obra de Celinha e conceder-lhe seu devido valor, como uma das mais importantes escritoras da literatura negro-brasileira.
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