Chimamanda Ngozi Adichie. Hibisco Roxo. Tradução de Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Hibisco é uma espécie de planta com flor originária da Ásia tropical e do Havaí, todavia seu cultivo se espalhou por muitos lugares – da China até o Pacífico; a América Central, devido ao clima favorável; e o Brasil, onde a planta foi introduzida provavelmente através do tráfico de escravos. Na obra de Chimamanda, a espécie de muitas variedades aparece como um marco de mudanças bruscas na vida da protagonista, Kambili, uma adolescente nigeriana de quinze anos que vive uma vida repleta de opressão, fanatismo e violência.
O fundamentalismo religioso é um dos temas centrais da obra, ele se dá principalmente através da crença baseada na interpretação literal dos livros sagrados da religião católica. Trazendo essa questão para os dias atuais em nosso país, podemos vivenciar seu forte avanço: os ataques de ódio estabelecidos pelo fundamentalismo religioso permanecem recorrentes. Lembremos o caso da menina apedrejada porque usava roupas brancas de sua religião, o que escancara o abjeto motivo da ação criminosa. Ofensas, devastações e incêndios, realizados de uma forma sistemática, comprovam que não se trata de mera eventualidade. A figura de Eugene, pai de Kambili e apelidado de Papa, ilustra muito bem o que foi dito acima: trata-se de um homem que apresenta um fervor excessivo, irracional e persistente por qualquer coisa ou tema historicamente associado a motivações de natureza religiosa. Em nome da religião, ele faz cobranças excessivas aos seus filhos, controla todas as suas ações e usa da violência como castigo quando suas ordens ou seus desejos são desobedecidos, tratando da mesma forma sua mulher. Deus é justificativa para tudo.
Há também a outra face de Papa: um homem rico e caridoso, que faz doações para muitas instituições e pessoas; porém, percebo que o comportamento de Eugene mostra uma prática comum a alguns fanáticos religiosos: a excessividade da crença disfarçada como bom exemplo. Ele se mostra muito amigável, muito bondoso, fala muito bem, e isso faz com que muitos não percebam o fanatismo disfarçado entre suas palavras de incentivo e boas ações. Isso se revela claramente no convívio familiar, Kambili e sua mãe tentam justificar as ações violentas de Eugene através de sua postura “exemplar”. A autora nos leva a pensar como a intolerância religiosa e o fundamentalismo estão interligados. Papa rejeita e condena tudo aquilo que difere de suas concepções sobre a religião, como faz com o próprio pai, que cultiva a fé por meio da ancestralidade. Refletir o extremismo da devoção, dos princípios e das convicções em um lugar como a Nigéria apresenta a diversidade dos fundamentalismos e sua extensão para além das fronteiras do Islã, comumente representado pela grande mídia como expressão religiosa propensa ao fanatismo.
Ponto não menos importante a ser abordado na obra são certas questões estéticas que provocam o imaginário ocidental. Inicialmente, todos os personagens principais são negros africanos, o que rompe com a esfera de expectativas de um leitor habituado a um modelo eurocêntrico. Além disso, toda a narrativa se passa em duas cidades da Nigéria, propiciando ao imaginário de quem lê uma nova experiência. Entretanto, o contexto contemporâneo possibilita facilmente a ruptura do estereótipo que se tem da África como um lugar bruto e desordenado, especialmente na descrição da casa de Kambili, que é narrada tão detalhadamente pela protagonista. Além disso, a maneira envolvente como a narradora conta a história, através das sensações permite uma maior identificação com a personagem.
Outra questão interessante em Hibisco Roxo é a figuração das personagens femininas – que, aliás, são as principais do livro. Elas não se moldam ao padrão de representação das mulheres no meio literário. São mulheres vigorosas, reais e com personalidades únicas. Mesmo Kambili e sua mãe, Beatrice, mostram muita coragem para suportar as opressões de Eugene. Tia Ifeoma é uma professora universitária, mulher independente, que cria seus três filhos sozinha. Amaka, prima da protagonista, é uma jovem interessada e argumentadora, que reconhece imensamente sua cultura e ajuda sua mãe em todas as tarefas. Kambili, a narradora, é dona de sua própria história. Personagens criadas com essa sensibilidade e cuidado me fazem perceber o quanto Chimamanda realmente se preocupou em construí-las desafiando modelos convencionais.
Ao fazer uma análise das personagens femininas – por exemplo, Tia Ifeoma e Beatrice (Mama) – podemos observar algumas notáveis características. A figura da Tia contesta a prática patriarcal, através de sua ousadia para com Eugene. Além disso, é na residência da tia que Kambili e Jaja podem conhecer um catolicismo distinto do que haviam aprendido: uma prática religiosa na qual a integração com a cultura Igbo não é julgada. Dessa forma, é no contraste da identidade da tia com a identidade do pai que a narradora constrói, ou desconstrói, sua própria identidade. Já a mãe, Beatrice, é a princípio uma mulher subserviente, de poucos atos e voz sempre baixa; entretanto, percebo que seu comportamento passivo e indiferente vai mudando ao longo da obra. Completamente submissa, financeira e emocionalmente, ao esposo, ela tem medo de ser abandonada pela dificuldade em engravidar outra vez. Ironicamente, tal situação é consequência de alguns abortos que sofreu após ser atacada pela pessoa que vê como sua protetora. Sua afeição pelas estatuetas de bailarinas que ornamentam a casa – destruídas no início do livro – é intrigante, pois parece exprimir a vontade de libertação que sempre sustentou e que se afirma ao final da obra.
A crise política e econômica de um país assombrado pela repressão ditatorial se mostra explicitamente: uma Nigéria infestada pela corrupção, tomada por greves e protestos, em que as pessoas pelejam para conseguir se alimentar, racionam água e se apertam em pequenos cômodos. O embate é social, emocional e cultural. Mas dele surge uma nova concepção: a responsabilidade da autora em lutar para que a Nigéria deixe de ser um lugar de corruptos. Através de Ifeoma, Adichie inicia uma reflexão sobre a migração aos EUA. Em determinado trecho podemos captar essa noção, quando Obiora argumenta que sair do país não é uma solução: “os que estudaram vão embora, aqueles que têm potencial para consertar o que está errado. Eles deixam os fracos para trás. Os tiranos continuam reinando porque os fracos não conseguem resistir. Você não vê que é um círculo vicioso? Quem vai quebrar esse círculo?” (p. 258-9). Trazendo esse questionamento para o atual cenário político brasileiro, penso que devemos seguir o exemplo da autora e usarmos os meios que temos – a escrita, a arte, a fala – como forma de lutar contra tudo aquilo que é injusto, indigno e nos desumaniza.
Para Eugene, falar em igbo era não ser instruído, sofisticado e civilizado, pensamento que revela os desvios da predominância linguística e a suposta superioridade da língua inglesa sobre o idioma africano . Nesse contexto, as divergências internas de alguns personagens com relação às pressões linguísticas mostra também o bilinguismo colonial, no qual as duas línguas e culturas não existem de maneira simultânea; em vez disso, todo um universo cultural é afirmado pela preferência linguística do falante, ocorrendo assim, uma sobreposição no que diz respeito à língua de menor prestígio social. A narradora discorre: “Às vezes, eu imaginava Deus me chamando, com uma voz possante e com sotaque britânico. Ele não diria meu nome direito; colocaria a tônica na segunda sílaba em vez de na primeira, como o padre Benedict” (p. 191). Se o modelo que o colonizado tem de líderes religiosos é o dos missionários brancos, as ideias de Deus seguem necessariamente as imagens dos europeus: um deus indiferente às necessidades do povo africano, que nele não se reconhece.
A relação da menina com o padre é afetuosa e genuína; assim, ela acaba descobrindo o amor na figura bondosa e carismática de Amadi, amigo certo nas horas mais incertas – ainda que, numa visão mais tradicional, seja questionável uma fiel se apaixonar por um padre. Padre Amadi é um homem totalmente diferente dos que Kambili já conheceu: da mesma forma que se dedica e leva muito a sério seu sacerdócio, ele sabe honrar as práticas e tradições do povo local e mostra à garota outras formas de viver, sem deixar sua fé de lado.
Particularmente, essa narrativa me tocou profundamente e passa por uma identificação pessoal fortíssima, pois remete a muitas experiências vivenciadas durante um longo período da minha vida. Essa identificação envolve desde o comportamento da protagonista, em relação à sua timidez e à necessidade de agradar ao pai e a todos, até a luta contra a vontade de expressar suas próprias opiniões e questionar as atitudes severas de Eugene. Reconheço-me também na passividade de Mama, que é um retrato do comportamento de milhares de outras mulheres diante de um relacionamento abusivo física e psicologicamente. Muitas não denunciam seu agressor por temor, por acreditar que ele seja garantia de estabilidade ou proteção, em geral financeira, e até por causa da opinião alheia.
O estilo da autora envolve por sua forma de descrever, conduzindo quem lê para um espaço construído por meio do olhar da narradora. Há, por exemplo, uma nítida divergência entre o largo ambiente da casa onde a protagonista vive, de chão frio de mármore, no qual não há comunicação, e a casa quente e cheia de movimento dos primos de Kambili e de sua tia Ifeoma. A abundância de detalhes também está na descrição dos sentimentos e atitudes da protagonista. A minha admiração por Chimamanda nasceu da leitura de textos diversos e entrevistas e cresceu ainda mais com a leitura de Hibisco Roxo, principalmente por tangenciar uma série de questões associadas ao meu passado e atualidade, bem como ao complexo processo de amadurecer e formar uma individualidade mais autêntica. Certamente, Chimamanda plantou hibiscos em mim.