Vozes da resistência (II)

Priscilla Mina (Org.). Vozes da resistência. Conexão 7, 2020.

No texto de hoje, continuo a tratar de Vozes da resistência, livro que reúne apenas escritoras negras, organizado pela editora Priscilla Mina e publicado pela Conexão 7. Na semana passada, abordei quatro das dezoito narrativas publicadas no livro, que abordam o racismo no ambiente escolar e a capoeira; já as narrativas que comentarei hoje abordam outros temas – para tanto, recorrendo a diversos registros, eventualmente menos literários e mais ensaísticos.

Em um momento no qual a luta antirracista conclama ao reconhecimento do valor das vidas negras, inclusive no Brasil – nação construída sobre políticas genocidas –, é inevitável que escritoras negras abordem as questões da violência e da precariedade da existência. Em “Passarinho”, Francelina Rosa escreve sobre Naná – menina preta da favela que, tendo sofrido inúmeros abusos, parte em busca da liberdade, o que a conduz a um final trágico e pungente. Não por quaisquer contingências, a trajetória de Naná apresenta pontos em contato com “Menininha”, a protagonista de “Olhos de Dandara”, narrativa assinada por Sol de Paula, que relata os encontros com uma mulher negra, diagnosticada como histérica, cuja trajetória biográfica é marcada por uma sucessão de violências. Se “Menininha” não parte sem deixar um legado – a boneca que considerava seu filho –, a Naná sequer é oferecida a chance de fazê-lo; em ambos os casos, estamos diante das consequências do brutal tratamento dispensado às vidas negras. A precariedade da existência é igualmente tematizada em “Sem despedida”, de Ivone Rosa – em que o diálogo ficcional entre a menina Dandara e sua bisavó, D. Zene, possibilita à criança conhecer a história de sua ancestral e compreender a finitude em uma experiência epifânica. Não menos densa é a narrativa “Ela, e alguns pronomes para contar histórias”, composta por Jacqueline Oliveira a partir de um provérbio africano (“Trate bem a Terra, ela não foi doada a você por seus pais, mas emprestada a você por seus filhos”); narrativa de notável potência metafórica, em que a força das águas incita uma mulher ao renascimento.

Historicamente, as múltiplas formas de renascimento têm sido impostas às vidas negras como estratégias de sobrevivência. O renascimento por intermédio da afetividade aparece se faz presente em “Andanças de Dona Oni”, conto de Sheila Martins, cuja protagonista – mulher preta, criada por pretos, que criava pretos, que por obra do afeto ultrapassa o sentimento de fracasso imposto pelo genocídio. Assinado por Raphaella de Souza, integrante do LetrasPretas, “Rascunhos: múltiplos de 7” tem como protagonista Niara, a menina que nascera triplamente marcada (“mulher, pobre e preta”) e que, para lidar com as violências que sobre ela incidem, renovando-se a cada sete anos, aprende a escrever utopias – o que pode ser interpretado como uma forma de renascimento literário.

A incessante busca por liberdade é o tema de narrativas como “Presilha”, assinada por Roberta Abreu, que aborda uma questão profundamente presente na vida de mulheres negras: o cabelo. Como tantas incontáveis mulheres negras, a protagonista Manuela é ensinada a prender os cabelos; até que, finalmente, percebe como a recusa da presilha pode levar à libertação. Tangenciando questões caras à militância, Camila Mendonça escreve, em “Tempo”, sobre a emergência da consciência antirracista, ao ficcionalizar uma vivência familiar na qual um pai relata à filha, militante que testemunhada a perseguição de companheiras e companheiros durante a ditadura, a percepção das desigualdades raciais na sociedade, por ele sempre recusada em nome da “democracia racial”.

Outros contos também abordam relações familiares e afetivas. A temática amorosa aparece em “Partida”, de Kenia Cristina dos Santos Mateus, que narra a separação entre Preta e Benedito no preciso momento de revelação dos sentimentos. Em “Das mestras-lavadeiras”, Veronica Cunha resgata ficcionalmente a figura de Dona Irene, a “mestra-vó-lavadeira” que, por meio de seu ofício, oferecia lições aos netos, que com ela aprendiam a “permanecer leves como as bolhas de sabão”. Já Negra Rose, nome literário de Rosilaine Bragança, assina “Memórias de Selma” – narrativa que, como anuncia o título, apresenta um forte tom memorialístico, resgatando a trajetória da mineira Selma (sua mãe, a julgar por indícios oferecidos pelo texto) que, não se curvando perante as adversidades, falece deixando sete cartas, uma a cada filho, e reafirmando suas origens africanas. As árduas trajetórias de mulheres negras, sempre em luta contra as múltiplas opressões que sobre elas incidem, também assomam em “A rainha, a pecadora e a guerreira”, de Raíssa Santos de Jesus, que descreve a história de “três pretas pobres” – Regina e suas filhas, Dandara e Madalena, que conseguem superar não apenas os obstáculos socialmente impostos, mas também as tensões familiares.

Finalmente, destaco um par de narrativas presentes no volume que tratam da autopercepção racial, para tanto recorrendo a um tom menos ficcional do que ensaístico: é o caso de “Aquela que nasceu sem cor”, de Rosane Albuquerque, e de “O Colorismo como lugar”, de Mariana Costa Portela Mina. Ambas as autoras resgatam suas respectivas trajetórias biográficas para abordar os processos ao longo dos quais alcançaram o entendimento de seus lugares, como pessoas racializadas, na sociedade brasileira.

Compilando múltiplas narrativas e escritas diversas, Vozes da resistência é (mais) uma veemente demonstração de que, para além das tentativas de silenciamento impostas pelo sexismo e pelo racismo, mulheres negras persistem como fundamentais pilares de resistência, questionando e resistindo contra as forças opressoras.

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