
O racismo é algo que pode ser perdoado? A escravidão dos nossos antepassados pode ser perdoada? Alguém, além de mim, carrega esses pensamentos como uma mágoa? As vezes me pergunto isso. Uma vez, assistia à cena de um filme; era uma mulher negra escravizada sendo vendida diante do filho. Meu pai, que também é negro, desabafou que pra ele é um alívio saber que não nasceu naquela época. Como se tivesse nascido salvo daquilo. Eu compartilho secretamente do alívio que ele relatou… não ter nascido escravizado; simultaneamente a isso, carrego este misto de mágoa e raiva, sabendo que fizeram isso com meus antepassados. Mas não vim aqui para só para falar de dor, mas de como podemos usar essas feridas em um processo que seja cura e aprendizado, também.
No breve tempo em que tive acesso à universidade, um lugar que me transformou como pessoa, pensei que o racismo fosse algo quase resolvido dentro de mim. O racismo que vem do outro. Mas todos os dias, em muitos momentos, vejo que essa é uma questão em constante processo de mudança dentro de mim, quase em paralelo à constante mudança da minha própria identidade. Eu não sou o racismo, mas ele me deixou marcas, e também aprendizados. Em mais uma sessão de terapia em que eu conversava com a minha psicóloga sobre cabelos crespos e identidade, sobre relações inter-raciais e outros assuntos que constantemente voltam à minha vida, ela, que também é negra, me disse algo em que eu já tinha parado para pensar outras vezes, mas que ainda não consegui alcançar. Ela me disse que é possível olhar a nossa história – a dos negros – de uma outra perspectiva, que não a da dor. Me falou sobre pensar o passado e olhar o futuro com a perspectiva do empoderamento. Conversamos sobre os significados dos turbantes africanos, sobre essa coroa que protegia as oris, as cabeças das rainhas. Ela me disse que somos rainhas; nós, intelectuais negras, somos rainhas. Outras vieram antes de mim: Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Dandara… as minhas ancestrais não são motivo de dor, mas incentivo e exemplo de como seguir adiante.
Também tenho aprendido sobre a potência da minha raiva. Sim, da raiva. Esses dias, por acaso, encontrei por escrito um discurso valioso da Audre Lorde, datado de junho de 1981, para a Associação Nacional de Estudos de Mulheres em Connecticut. Ela falava sobre nós, mulheres negras, não negarmos ou silenciarmos nossa raiva. Muitos são os estereótipos nos quais tentam nos aprisionar, e um deles é de que a mulher negra geralmente é “raivosa”. Sempre preferi a imagem da mulher negra forte, por mais que não possamos ser fortes o tempo todo e que a humanização da nossa imagem seja um direito nosso, uma verdade sobre mulheres negras é que duas coisas não podem faltar em nossa trajetória: coragem e força. Eu sou forte, não o tempo todo, mas eu sou forte; minha avó, que era negra, foi forte; as mulheres da minha família foram fortes. Nesta palestra, Audre Lorde fala sobre usar a potência da nossa raiva não como um sentimento destrutivo, mas sim como impulso para a ação, para impor mudanças efetivas em uma sociedade que tenta nos fazer acreditar no que, nas palavras dela, seria um “racismo imutável”, uma opressão tão natural e dada quanto a nossa existência. Podemos sentir raiva desses sistemas de opressão e usar isso como estratégia de incentivo para uma luta diária e legitimada. Eu não sou culpada da minha raiva e ela não precisa significar dor, mas pode representar outra fonte de potência.
Tenho aprendido que o caminho para a cura também está em ouvir mulheres negras, em aprender com elas, em valorizar novas epistemologias nas quais nossa experiência de negritude sirva como cerne dos processos de aprendizagem. Termino com os versos de uma poeta, mulher negra, Ryane Leão:
“Eu sinto e vejo
A minha cura
Que por vezes enlouquece
E me concentro não em resistir
Mas em puxar o ar e dar abertura
Às minhas contradições
Aos meus presságios
Eu já sei nascer sol no escuro
Às vezes eu piso em meu próprio abrigo
Fujo e deixo notícias somente comigo
Continuo me curando
Continuo viva”
Verdade.
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