O sujeito universal epistêmico que não existe

Harmonia Rosales, The virtuous woman

O que vou relatar aqui com certeza toca em feridas de qualquer pesquisadora negra, ou pesquisador negro, que viva dentro do meio acadêmico, e também não é nenhum assunto novo, mas a reincidência dessas questões só ressalta a importância de pessoas negras ocuparem lugares importantes nos discursos acadêmicos que legitimam teorias e perspectivas históricas a respeito do que é o mundo e suas representações da noção de indivíduo.

Vamos por partes, porque o assunto pode parecer simples, alguns diriam até óbvio, mas é complexo – e, por isso, é interessante e instigante, também. Mulheres negras têm falado sobre o perigo da história única; sobre a importância do lugar de fala; sobre a legitimação das nossas epistemologias, da nossa cultura; e sobre a valorização das nossas intelectuais. Abro parêntese para dizer que este texto não é destinado somente às mulheres, e isso vai ficar explícito no desfecho. Vou utilizar aqui algumas referências que dizem respeito ao gênero feminino porque é desse lugar que compartilho minhas experiências; é nelas que tenho buscado minhas fontes de conhecimento e minha percepção de mundo. É da sensibilidade e sabedoria das mulheres negras, principalmente, que tenho me alimentado como pesquisadora.

Essas mulheres têm trazido questionamentos importantes a respeito da insistência da academia em categorizar perspectivas históricas, estudos e conhecimentos pautados na noção de um sujeito universal. Poucas são as vezes, dentro da ciência e suas teorias, em que consigo ouvir a palavra “universal” e vejo coerência. Por exemplo: dentro da medicina, quando concordamos que muitas doenças são comuns a qualquer ser humano, ainda sim um médico precisa levar em consideração o contexto do paciente – etnia, histórico familiar, pertencimento a grupos de risco, etc. A medicina reconhece, e isso é aceitável, que mesmo uma doença como o câncer de mama, que pode atingir qualquer mulher, oferece um risco maior para mulheres negras, e nisso se consideram fatores sociais também. Mas utilizo o exemplo da medicina apenas para fazer uma provocação no âmbito do conhecimento científico que trata das humanidades: por que tantos pesquisadores das ciências humanas insistem na visão de um sujeito universal?

Muitas pesquisadoras, pesquisadores e cientistas vêm, há tempos, contribuindo para que repensemos essas questões. É visível que o meio acadêmico das humanidades, e falo do contexto brasileiro, ainda insiste em perspectivas históricas e filosóficas que narram a história da humanidade por uma perspectiva unicamente eurocêntrica, como se esta fosse universal; perspectivas construídas a partir da visão daqueles que colonizaram o campo da ciência, da cultura, das artes, a noção de tempo, o espaço e o reconhecimento na produção de tecnologias. O que quero que esse meio acadêmico leve em consideração é: não estamos reivindicando o apagamento dessas perspectivas teóricas, nem invalidando esses conhecimentos; mas, quando insistem em uma visão universal de mundo, uma visão universal de sujeito, outras fontes de conhecimento, saberes e epistemologias que estão fora desse cânone eurocêntrico continuam a ser deslegitimadas.

E, já que falamos em cânone, vou utilizar o exemplo de Carolina de Jesus, uma das escritoras negras mais importantes do século XX – digo isso porque ela usa seu processo de criação literária para repensar a função da poesia e da própria literatura brasileira, repensar a intelectualidade, trazer questionamentos políticos e sociais a respeito da sociedade brasileira e nos apresentar uma visão extremamente rica, em que mostra uma percepção do que é a experiência urbana para o negro brasileiro. Aqui me refiro à população negra que vive a verdadeira realidade do que é ser brasileiro em um país que privilegia uma classe branca elitista em cima da exploração e da pobreza de grande parte de sua população. Carolina de Jesus é o que deveríamos considerar, na literatura, como um grande clássico: uma intelectual cujas obras sempre têm algo novo a nos dizer, a nos mostrar. Mesmo assim, dentro do meio acadêmico, muitos se recusam a reconhecer a importância de novas pesquisas sobre Carolina de Jesus. Como se falar sobre ela tivesse sido uma “moda identitária”, necessária em um dado momento de um tempo que já passou.

Carolina de Jesus deixou um legado de pelo menos 5 mil páginas escritas: contos, romances, sambas, diários e provérbios. Mesmo assim, há os que sequer consideram sua obra como literatura. Abro um outro parêntese para lembrar que a literatura é uma das mais valiosas formas de expressão humana, ou seja: batemos novamente na tecla dos que tentam desumanizar a imagem de pessoas negras. Outras fontes de saberes dentro da academia são incontestáveis, desde que sejam saberes canônicos – que, coincidentemente, não são produzidos por pessoas negras. Falo de uma maneira direta, e que para alguns pode parecer um incômodo; mas eu, como mulher negra, me sinto incomodada o tempo todo quando, em sala de aula, ouço um professor falar sobre “mulatas”; ou quando vejo o negacionismo acadêmico a respeito dos impactos do racismo na trajetória de pessoas negras. Essas questões precisam ser ditas e repetidas até que, de fato, haja uma mudança significativa nas fontes canônicas de conhecimentos em um país onde metade da população é negra. Precisamos ouvir, estudar e valorizar intelectuais negras. Isso é indiscutível. Precisamos entender que usar a palavra “vitimização” para se referir à imagem de qualquer intelectual/escritor negro é OFENSIVO e inaceitável.

A sociedade brasileira tem uma dívida impagável para com a sua população negra, e todos os conflitos que têm batido à porta da academia marcam simbolicamente o tempo em que esse débito precisa começar a ser pago. Não há como discutir modernidade/sociedade/ciência sem passar por discussões de gênero e raça. Não se trata de questões identitárias; falar das consequências do racismo é rever o que entendemos por humanidade, e só aí aceito coerentemente o que seria uma “discussão universal”. Talvez o que falte a muitos professores/intelectuais brancos que se mostram resistentes a esta discussão seja honestidade. Finalizo esse texto pensando em quando Djamila Ribeiro fala sobre pluralidades, ou quando Carla Akotirene fala sobre interseccionalidades; pensando em como essas intelectuais negras contribuem para nossas reflexões quando nos fazem pensar que o campo do conhecimento é atravessado por realidades múltiplas, marcadas pelos vetores gênero, raça e classe social. Pensar nessas questões é trazer mais riqueza e honestidade ao campo das humanidades, seja no meio acadêmico ou fora dele. Significa criar campos teóricos de conhecimento que, de fato, representem os que foram colocados à margem, seja da ciência, da arte, da literatura ou da cultura. Aos leitores que me questionarem: “Então não há universalidade quando se trata de ciência?”, eu vou pedir que releia o texto. Ratifico que o que falta nessas discussões é honestidade; não peço que se coloque no lugar de pessoas/intelectuais negras, o nosso lugar já é NOSSO; eu insisto, apenas, para que nos ouçam.

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